Um Golpe de Sorte - A história de Tadeu e Joana
A história que vou narrar pode parecer ao leitor um fato inverossímil que só poderia mesmo se encaixar em relatos de ficção; mas não é esse o caso aqui. O fato realmente aconteceu e faz parte da nossa vida real, com os seus encontros e despedidas. Só preciso preservar, por razões óbvias de ética e de reputação, os verdadeiros nomes dos principais envolvidos. Na minha função de professor tomo contato com os mais variados tipos de seres humanos e deles advém as mais incríveis histórias; entre uma e outra lição ou exercício sempre um assunto ou tópico chama a nossa atenção; mas um foi especial e não me fez sossegar enquanto não encontrasse um tempo entre meus afazeres para colocá-lo no papel e levá-lo ao conhecimento daqueles que agora me leem.
O que faz uma pessoa nascer com sorte e, sem o mínimo esforço de sua parte, ser aquinhoada pela generosidade do destino ao lhe brindar com um prêmio, se não merecido de todo, mas inesperado, advindo de um passado já quase morto e enterrado? Como diferenciar o acaso de algo que já estava predestinado? Qual o mérito de ser escolhido; ou será que, no caso em questão, não houve escolha alguma e tudo não passou de uma união como outra qualquer sem que o destino interferisse na aproximação dos pretendentes? É muito difícil julgar ou mesmo arriscar um motivo para que tal fato tenha ocorrido. Quando Tadeu e Joana se conheceram e se apaixonarem, jamais imaginaram que suas vidas tomariam o rumo que acabou tomando; especialmente Tadeu que amava de verdade sua futura esposa.
A paixão de ambos foi fulminante. O namoro não durou mais do que umas poucas semanas, muito pouco tempo para que se conhecessem de fato; e o noivado muito menos ainda durou. Segundo eles, não precisava; amavam-se verdadeiramente e nada melhor que um casamento para provar, a quem deles descria, que o que queriam era a felicidade de fato, alicerçada na família e na união eterna.
O que se passa entre paredes só compete aos envolvidos. Os sentimentos de um não são os sentimentos do outro e algo deve ter acontecido ou, por outro lado, nada deve ter ocorrido para fazer perdurar aquela união que parecia tão sólida. Tadeu abandonou a casa em que moravam juntos com os pais da esposa, pasmem, no segundo mês de casados; casados oficialmente, dentro de todos os trâmites que envolvem o civil e o religioso.
Seria pouco dizer que Joana, literalmente, foi à loucura com o inesperado do acontecimento. Prova maior do que sentia por Tadeu, ela demonstrou à medida que os anos iam passando e seu estado, físico e mental se deteriorava, transformando toda aquela beleza, juventude e dignidade em nada mais além de depressão e arrependimento. Sua saúde mental ficou comprometida; seu comportamento deixava a mãe cada vez mais angustiada. Não mais saía de casa, não se arrumava, parou de estudar, enfim entregou-se de uma vez ao tédio e à solidão.
Agravou-se o estado mental de Joana; precisou ser internada. O alerta médico foi passado à família com toda a possível transparência que requeria o caso. A medicação seria forte para evitar a loucura e mantê-la, o tanto quanto possível, em contato normal com o seu mundo exterior. Mas isto lhe afetaria inexoravelmente a saúde do coração e uma vida muito longa não poderia ser esperada. Os diálogos de Joana com a família tornavam-se mais e mais escassos em sem um sentido claro e salutar.
- Sonho com Tadeu, mamãe. Vejo Tadeu toda noite em meus sonhos. A senhora não sonha com ele; por que não sonha com Tadeu? Tem que sonhar como eu, mamãe!
- Mamãe sonha, meu amor! Mamãe sonha. Agora durma; durma com Deus.
Acostumou-se com o estado insano de Joana; com seu agora total desinteresse com as mais simples e rudimentares coisas da vida. Os banhos tornaram-se escassos, apenas dentro do limite necessário à prevenção de uma doença contagiosa. Os cabelos crescidos encaracolavam-se causando incômodo a quem mal os apreciasse. As unhas dos pés e das mãos tornaram-se imprestáveis de sujas; e tortas; e disformes; pelo tamanho incomum.
Agora o fato principal que me fez tornar isso público e manifesto. Logo nos primeiros anos de constatação da cronicidade que atingiu a doença de Joana, encostaram-na por invalidez permanente. Com a garantia de um salário mínimo mensal como aposentadoria, não teria mais com o que se preocupar em termos de trabalho e sustentação básica pelo resto da vida. Mas isto se aplicaria a qualquer ser humano que não estivesse na situação de Joana. Quanto a ela, de nada lhe serviria o dinheiro. Mas recebeu-o mesmo assim.
A condição social da família era boa; o pai tinha um ótimo emprego e um salário bastante compensador. Sendo assim, o dinheiro que era de Joana, que ela não gastava e que a família não precisava ia, na sua totalidade, para a caderneta de poupança. E assim aconteceu, ano após ano. Imagina o que não representaria isto no fim de algum tempo. E este tempo foi muito além do previsto e acreditado. Joana sobreviveu a sua doença por quase sessenta anos de idade ao morrer, como dissera o médico, de doença do coração. Só que também ele não contava que durasse tanto assim a sua paciente.
Foram ver o que Joana tinha no banco acumulado durante tanto tempo. O dinheiro só fez crescer e se multiplicar. Isto porque, crescendo através do aumento anual do salário e multiplicado pelos juros em cima de juros e mais a correção monetária de dezenas de anos, o montante estava, por ocasião de sua morte, em um milhão e trezentos e vinte mil reais. Qual não foi a surpresa e a expectativa do que fazer com tamanha fortuna.
Acionaram a agência e requereram a retirada. Mas, não contavam com a resposta, baseada unicamente na lei que rege o direito de posse. Joana fora casada, não importa por quanto tempo, em regime de comunhão de bens. Portanto, tudo que pertencia a um enquanto durasse a união – e ninguém providenciou o contrário – também pertencia ao outro. Logo, Tadeu, e ninguém mais, era o detentor, por direito e honra de toda aquela bolada. Logo Tadeu, que foi o que menos participou da vida dessa incomum personagem e não passou de meses o tempo em que esteve ao seu lado. Mas, assim quis a sorte, uma incógnita indecifrável.
Baixaram o edital e não foi difícil encontrá-lo. Após a morte dos pais, ficou a casa, de cujo valor, um terço pertencia a Joana; mais algo em torno de cento e vinte mil reais para a conta do afortunado ex-marido, que só não deixou de ser ex-casado por não querer o destino; deve ele ter feito lá as suas artimanhas para não despertar, nas cabeças dos que eram próximos de Joana, a lembrança de que ela ainda estava casada. Como deve se sentir hoje grato por isso Tadeu! E como não devem estar morrendo de arrependimento todos os parentes de Joana que ainda vivem neste mundo de meu Deus incompreensível para o entendimento humano!