O abandono
Acordou pela manhã com uma sensação assustadora. Assustadora porque não é todo dia que alguém acorda com uma parte do corpo faltando.
A primeira reação foi, instintivamente, tocar-se e, ao verificar a ausência daquele até então indesejável pedaço da anatomia, correu olhar-se no espelho.
Realmente, o nariz tinha sumido. Em pânico, Tonico olhou-se no espelho novamente, confirmando aterrado que seu nariz não estava mais ali. Em seu lugar, uma superfície plana com dois buracos onde seriam as narinas.
Dando um ou dois passos para trás, bateu com as costas na parede do banheiro. Atônito, levou as mãos à cabeça, tentando entender o que estava acontecendo. Tentou lembrar-se, em vão, do que acontecera na noite anterior, algo que pudesse enfim explicar aquela situação no mínimo estranha...nada lhe veio à mente.
Meio atordoado ainda, lembrou-se que tinha algumas máscaras cirúrgicas, daquelas que se usam quando se tenta evitar algum tipo de contágio. Fazia algum tempo que aquela região enfrentava um considerável problema na disseminação de uma forma bastante agressiva de gripe.
Colocando uma das máscaras, vestiu as primeiras roupas que encontrou, saiu do apartamento e ganhou a rua, pensando por onde começaria a procurar. Tinha alguns amigos, mas não sabia como faria para pedir alguma ajuda, afinal como explicar que seu nariz tinha sumido? Diriam ser louco, ou drogado, coisas do tipo. Viraria piada, alvo dos deboches de quem ouvisse tal história.
Seguiu em direção à banca de jornal que ficava logo em frente ao prédio onde morava. Chegando lá foi logo perguntando:
- Roberto, preciso que me diga uma coisa, você que tá aí desde as sete da manhã, por acaso viu meu nariz saindo do prédio? sozinho, ou quem sabe na companhia de alguém?
O dono da banca – Roberto – responde sem ter que pensar muito:
- Realmente, eu lembro de ter visto um nariz passando por aqui, coisa que não é lá muito comum, imagino que fosse esse que você procura. Mas estava sozinho sim, e parecia ter uma certa pressa.
Aquela resposta, que de certa forma já esperava, deixou-o abalado, afinal sempre reclamara dele, do seu formato, da aparência, da sua incrível capacidade de sempre ter cravos ou espinhas piorando algo que já não era bonito. Com uma certa curvatura para o lado, e num tamanho avantajado, não era o nariz que alguém desejasse ter e, naquele momento, ele havia descoberto que o até então indesejado nariz havia lhe deixado...cheio de razão, isso ele tinha que admitir...
Caminhou apertando o passo e seguiu em direção ao Mercado "Bom de Preço". Ele sabia que muita coisa encontrada na região era ali deixada, uma espécie de achados e perdidos do bairro, guarda-chuvas, livros, óculos, coisas do tipo. Quem sabe alguém ali não teria encontrado seu nariz também...
Chegando ao tal mercado, dirigiu-se diretamente ao balcão do guarda-volumes e perguntou pelo nariz. A resposta não foi muito animadora:
- Nariz não há nenhum no momento...havia um semana passada, mas já vieram buscar. Eu só tenho aqui uma orelha esquerda...
Orelhas...estava bem com as que tinha, eram pequenas e bem coladas à cabeça. Talvez o Jairo se interessasse, afinal poderia trocar por suas orelhas de abano e não seria mais chamado de Dumbo... mesmo assim era só a esquerda...
Agradeceu e saiu rapidamente. Não deveria perder tempo, afinal aquele nariz, mesmo não sendo cobiçado, visto sua falta de encanto, poderia interessar a alguém, ou quem sabe até ser atropelado.
Assim passou o dia: perguntando aqui e ali, seguindo pistas de quem o havia visto, enfim, fez o que pode para encontrar o tal do nariz, tão desajeitado mas tão importante naquele momento. Jurou que seria diferente, jurou que caso o encontrasse nunca mais reclamaria, nunca mais se lembraria dos defeitos, e que a partir de então passaria a falar das suas qualidades, dos seus pontos positivos. A noite chegou e Tonico voltou frustrado ao apartamento. Faltou ao trabalho, sequer almoçou, uma vez que incumbiu-se o dia inteiro da incessante busca. Cansado e triste, desabou no sofá. Olhou sua imagem refletida na tela da TV desligada e chorou enquanto observava os dois buracos no meio da face.