MOSAICO BRANCO

Com uma leve insistência metódica, dispôs os móveis delicadamente, atentando com dispersa sofreguidão para o alinhamento entre a mesa e as respectivas cadeiras de sua cozinha. Tentava impor, como era de seu costume, a existência de uma felicidade ordenada antes de tudo pelas coisas externas, porque o interno exigia modelos, noções exatas, retidão e compostura. E ela, a vaga insistência de um ser, não estava acostumada a esse tipo de exigência privativa, que oprimia sua liberdade inocentada e lépida de voracidade pelo que é simples, prosaico e legítimo. Terminando sua minúcia esclarecedora para si mesma, sorriu talvez mecanicamente, talvez com saudades de uma banalização decente, talvez porque sorrir fosse mesmo um ato próprio de seu figurino intuitivo que uma pessoa possui, com indócil vestimenta que é a naturalidade da vida. Enfim.

Às vezes era tão cômodo o modo como as pessoas exigiam esta desordem calamitosa e ao mesmo tempo tão sôfrega de mansa solidão.

Exasperou-se dos seus pensamentos e, como quem retorna lentamente à sua própria casa após uma noite de orgias veladas e insidiosas, voltou ao seu silêncio súbito de pessoa mecanizada e excêntrica, como um ritual de desalinho absurdo na seda de sua pele quase impessoal. Pois não é que as cadeiras estavam um pouco tortas, ora. E isso, para ela, era um exagero ácido, uma lacuna entreaberta nas fissuras de sua construção existencial. Ah, não, essa assimetria parece até que ia crescendo a ponto de desestabilizá-la por completo, o edifício interno por ruir, quebrantada em agonia crescente.

Com um impulso que excedia a si mesma, um movimento estúpido mas vigoroso, levantou-se e foi corrigir o grave defeito.

Após a fotografia exata e mental dessa dimensão espacial, sentiu-se, enfim, aliviada, dominada em bárbara escala. A cozinha era, no fim das contas, uma abstração geométrica, um gosto apurado pelas coisas retas, uma definição precisa de algo que ocorria como uma necessidade deflagradora. Que a disponibilidade dos eventos a confortava, isso era evidente. Refixou-se, de pé, mirou novamente o espetáculo daquela organização, viu corrigido o erro – aquela ferida de guerra letal e inconstante – e então, talvez mais uma vez aliviada, suspirou de cansaço de nunca possuir qualquer coisa que pudesse chamar de sua, de real ou palpável. Sua essência e misericórdia.

Depois, em ruptura descontínua, parecia que as bordas daquele cômodo quadrado de repente começaram a ganhar vida e autenticidade, a desprender de sua rudeza primitiva e, num movimento que suplantava o instante vermelho de uma existência mais ou menos artificial, invadir-lhe os excessos de sua pessoa ironicamente afável e pouco dominadora. Ela, o resultado de resíduos, lenta e incoercível. Ela, o animal iconoclasta, ignorante de sua função e magnificência. A expressão ativa de uma ideia ambientada numa reclusão absoluta, num sedimento de expectador que assiste ao próprio ato de desmoronamento interno sem poder mover-se, sem a reação de galinha com o pescoço recém destroncado. Inocentada de si, pedia ajuda com o silêncio de sua garganta no vácuo da voz, nas varizes estriadas do tempo e seu surdo entardecer melódico e habitual.

– Primeiro porque tudo se disseca em mim, disse, enfim, áspera e lisérgica, em tristeza enérgica e vital. E existe a grande mentira de que as coisas nunca estão em movimento.

Sim, ela estava camuflada no que não era exatamente uma ordem a ser seguida, mas era (sempre fora), no final das contas, seu jeito dúbio de existir, entre o efêmero do instante e o ruído dilacerante do relógio da sala, a maquinaria angustiante. Sua fisionomia ganhou uma seriedade incompreensível, dissimulada, atenta às ínfimas transitoriedades dos vestígios de si, da suprema delicadeza de seu ser em ansiedade versátil, em limite pênsil e oblíquo, e, mesmo assim, ante esse espetáculo de deteriorações exatas e imprevisíveis, permanecia incomunicável no recôndito de sua pessoa, atenta talvez às fagulhas do presente viscoso.

Onde mesmo estava ela? Em que lugar, ponto estável e reconfortante, encontrava-se? Nunca estivera tão entregue ao acaso vingativo, à estrutura insólita do ambiente vergonhosamente rígido, ao niilismo de sua despersonalização fortuita e sem a máscara de aridez submissa. As cadeiras extrínsecas. A mesa e seu obsoleto e grotesco existir no centro das ausências. A desordem extrema e dilacerante. E, dentro disso, ela – o estereótipo inclassificável de uma mulher vadia por si mesma.

Para perto de si, ou melhor, para dentro de si, então era impossível a obsessão da retidão, os traços exatos e previamente configurados? Se a cozinha de sua casa lhe era estranha, então o que ficava de si nos espaços isolados disso que muitos chamavam inocentemente de lar? Pois então se o equilíbrio da cozinha era um exagero inaceitável, o que haveria, quando estivesse sozinha, o que haveria para pegar e se orientar, ela que era uma grande ave e fêmea e sem bússola instintiva?

A verdade, pensou, a verdade é que em tudo existe uma máquina insólita com as engrenagens travadas, com os parafusos emperrados e enferrujados. E existe uma imobilidade feroz, um distanciamento preciso e autêntico, uma abnegação que trai a si mesma, inclusive os fatos, as fotos, os restos e os rostos, esse envelhecimento íntimo e puro de cada pessoa, como um grande elefante que se dispersa da manada prestes a morrer. Tudo se entranha na extensa rede de inconveniências da vida, esse elo de contingências exangues.

E porque, também, o convívio com os elementos exteriores é sempre líquido e árduo.

E, permanecida nesse absurdo intransponível, ficou por um ou dois instantes. Aliás, é sempre necessário o realismo exagerado daquilo que nos escapa, essa armadilha terrível que, cedo ou tarde, captura todo mundo. Pelo menos os atentos ao que excede o convívio diário, sem dúvida nenhuma. E não é que os objetos exteriores são prolongamentos da nossa personalidade, imaginava com rancor, isenta de si, próxima ao elemento sulfúrico que é a artimanha de ver uma mesa, uma cadeira, e, no lugar, ver uma mesa, uma cadeira, com leve letargia estrábica, e mais nada.

E porque, também, o desespero exige certa dose mecânica de impessoalidade, de vagar impreciso no mosaico branco dos seus próprios sentimentos, como um dia amanhecido pelas bordas de um sol e sua placenta amarela. É, a realidade, às vezes, por si só, é mórbida como um sal no largo costado de um sapo e seu oco corpo.

A visibilidade, então, ganhou força, ganhou forma, ganhou conteúdo de miséria. O instável, o equilíbrio precário, sua personalidade claudicante e feminina de repente organizou-se num movimento de solidão quase absoluta. Ela estava, mais uma vez, ela estava ela, ela era, inexplicavelmente, sua imagem e semelhança, transfigurada na evidência inocente de um espelho e seu fundo sentir – mas que espelho pode sentenciar o sonho de um ser? O encontro de si depois de um isolamento móvel é sempre árduo, vem como um furacão no mais profundo do coração e sua força de pulsação. Sim. Encontrar-se com os objetos (a familiaridade de antes, a convenção ritmada, o espaço conformemente explícito, a exata linha das emoções antes dispersas, o refinamento de poder contar com o alinhamento precoce das cadeiras e da enorme mesa seca e lisa) era uma alegria em forma de milagre, um soco sadio na sua ridícula maneira de entender o desenlace de uma manhã e seu outono exíguo.

Dentro desse súbito torpor, riu-se mecanizada e histérica, levou a mão à boca, de puro espanto de si, de pura comoção e vontade de, quem sabe, chegar a existir no espaço e no tempo, conforme sua coloração pálida exigia naquela manhã e sua diáspora cinza-escarlate.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 28/08/2013
Reeditado em 03/09/2013
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