A carta de Deus
Se algum dia alguém me contasse uma história com as mesmas palavras que utilizarei para contar-te essa ou, ao menos, narrasse um fato de congruência definida e clara com esse, indubitavelmente diria ser mentira. Não que eu acredite que Deus não conversa com o povo, longe de mim tal blasfêmia; pois até tenho como verdade os inúmeros trechos bíblicos que narram diálogos entre o homem e Deus, e que se citados nessas futuras linhas, por tão insólitos que são, talvez sejam tratados como meras palavras inventadas pela cabeça de um aspirante a contista. Não duvido que Deus fala. Mas, o fato é que minha dúvida quanto a veracidade, não da história, antes, de apenas duas palavras, surgiria assim que o narrador me dissesse o veículo usado por Deus para levar seu comunicado: uma carta, uma carta física, em folha branca e escrita à mão. E, claro, a marcante forma nada ortodoxa como foi entregue também não se assentaria facilmente sob minhas convicções.
O fato é que Deus enviou-me uma carta…
Ainda era cedo. Saia da faculdade naquele momento e o relógio do rádio do carro marcava 11:30 da manhã; quando os professores, que muitos deles já conhecia até mesmo de esbarros nos corredores, não atrasavam e eu não tinha compromissos com a biblioteca, era esse o horário comum de saída. Santos professores daquele dia.
O sol não estava nada amigável, pelo contrário, fazia questão em ofuscar-me as vistas. Por esse motivo, achei melhor puxar o quebra sol de sua posição cômoda e pô-lo entre mim e o para-brisa. Agora estava perfeito; e até via nitidamente, mesmo que não sendo nada de especial e desejável, por assim dizer, toda a cena edificada e arborisada da avenida Maciel D’Carlo. E o trânsito ameno, seguindo seu curso sem qualquer impecilho inconveniente, acentuava ainda mais a cena da perfeição e facilitava o contentamento em meu semblante propício. Mas o silêncio que havia dentro do carro era quase de um indício fúnebre, e de longe era o mais inadequado à cena. Logo, tomei a liberdade de inundar-me em um bom som: Inverno, de “As quatro estações” de Vivaldi. E apensar de naquela ocasião estar vivendo o fim do verão de 2012 mas de fato com a jovialidade escaldante do princípio, não me sentí nada incoerente quanto a minha escolha do som.
De repente, meu celular deu sinal de vida; de fato não o tinha percebido pelo ruído – lembrei-me de tê-lo posto somente para vibrar. –, antes, e por uma quase nada fração de segundo, fora pelo fato de o meu olhar ter sido desviado bruscamente para a luz piscante da pequena tela do aparelho posto na caixinha rasa de porta-trecos (ou outro nome mais conveniente, que agora me fugiu) entre os dois bancos dianteiros; então, soube de imediato do que se tratava. Mas, por estar em movimento e consciente do fato, deixei-o tocar deliberadamente; porém, tinha a intenção de estacionar no posto mais próximo e descobrir quem me havia telefonado; já tinha escutado muitas história sobre negligências telefônicas e nenhuma delas foram-me agradáveis, por isso não queria descuidar-me da suposta que estava recebendo.
O céu daquela manhã já se findando estava limpo como uma lençol azul-claro estendido no varal de uma senhora demasiada caprichosa. E maculado apenas por algumas poucas nuvens ralas, que talvez pudessem ser numeradas em uma única mão, ou no máximo duas, e que pela fraca consistência delas sequer pareciam brancas. O sol estava tão vivo quanto antes, apesar de não terem passado mais que uns vinte minutos desde que sai da faculdade, e quando via uma pessoa exposta a ele, até imaginava o infeliz estando a ser cozido à míngua pelo calor descompassado. Mas, não se podia fazer nada senão se acorrer às sombras das árvores; e de fato era essa a cena que mais se via.
Quando contornei a rotatória decrépita ao fim da avenida Maciel e segui por uma rua distinta, Vivaldi ainda orquestrava vivamente dentro do carro mas agora já havia saltado para um outra estação – caso queira saber, por satisfação cultural ou mera curiosidade, ainda permenecia sem “coerência”: Primavera; mas não me importava. Então percorridos mais alguns tantos metros, logo avistei o posto. Estava vazio. E o pátio que normalmente servia de descanso para caminhões, não abrigava, naquele momento, nenhum desses imensuráveis veículos de carga. Talvez fosse o horário.
Logo, estacionei, deixando o carro ainda ligado sob uma árvore de imponência medonha, dona da sombra que cobria grande parte do pátio; por mais que eu passasse todos os dias naquele mesmo lugar, nunca tinha apercebido-me daquela árvore monstruosa. Grande descuido de atenção. Então, apressadamente, evitando qualquer detalhe trivial, tomei o celular na mão e lí o nome que aparecia na tela. Logo praguejei sutilmente o fato: era apenas uma mensagem; e com um número desconhecido de remetente, de inacreditável um dígito.
– Uma mensagem? – Nem me importei com o número. E também não lí o texto.
Joguei o celular no mesmo lugar de onde o havia retirado antes e em seguida encaixei a primeira marcha. Mas antes que eu pudesse pressionar o pedal do acelerador e saí, o celular voltou a ouriçar-se. Tomei-o novamente na mão e constatei que agora de fato era uma ligação; e com o mesmo número desconhecido. Mas não o atendí; tornei-o ao mesmo lugar.
– Agora você liga!
Se me perguntarem o porquê de não o ter atendido, de fato não o saberei responder; apenas o fiz. Mas, talvez foi pelo fato de não ser nada comum receber telefonemas de um tal número “7”. E logo por assim ser, julguei mais que desnecessária minha parada no posto.
Então acelerei. Mas, antes que eu saisse do pátio do posto, apercebi-me de um papel amarelado caindo sobre o para-brisa do carro. Freiei. E a medida que esse tal papel foi-se aproximando, discerní perfeitamente um envelope. Quando por fim deitou sobre o vidro, descí do carro e o peguei. Era uma carta; depois que abri o envelope, tomei conhecimento.
E para que eu não corra o risco de omitir sequer a menor palavra do texto ou parafrasear a mensagem ao descrevê-la, escaneio e afixo abaixo o conteúdo, na íntegra, da carta que recebi.
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Céu, Terceiro Céu, 16 de fevereiro de 2012
Max Alves,
Escrevo-te para fazer-te um convite. E para assim ser contar-te-ei uma pequena história:
Uma criança brincava vivamente com seu pai. Os dois sorriam e se expressavam da melhor forma possível; da forma mais harmônica cada um deles conduzia seu próprio carrinho de controle remoto, sem chocar um no outro e nos obstáculos que propositalmente foram colocados para acrescer o percurso. Mas mesmo que a cena fosse de tamanha alegria, e de fato já permanecia assim por um bom tempo, de repente a criança sentiu-se desanimada e pô-se fora do quarto. Havia perdido a excitação que antes se via nitidamente em seu semblante. O pai então perguntou o que havia acontecido mas o menino não respondeu, limitou-se apenas a sair para o quintal da casa e logo depois para a rua, onde havia outros meninos sob diversão. O que havia sucedido? O pai não sabia. Mas então resolveu tomar alguma medida; queria o filho junto a sí. Logo tomou uma folha de papel em branco e escreveu algumas palavras. Depois, vestiu-se de super-heroi – unicamente para chamar a atenção do filho. – e saiu para a rua, segurando o papel já dobrado ao meio. Quando avistou o filho, este se divertia à beça correndo atrás dos outros garotos, num jogo de pega-pega. De fato, estava feliz; mas felicidade que se pode mensurar de longe é a de menor valia, e realmente não é a que os pais desejam aos filhos; e aquele não era diferente, queria tornar a ver o filho sorrir desmedidamente como antes. Então, o super-heroi entregou rapidamente o bilhete ao garoto e na mesma velocidade voltou para o quarto, despiu-se da fantasia e foi à janela, agora como o pai de antes. Mirando o filho, pode vê-lo a desdobrar o papel, um tanto desentendido – procurava o super-heroi com os olhos atentos, mesmo que sabendo ser seu pai. Quando por fim deitou o olhar à escrita, leu o seguinte texto: Filho, volta! Vamos tornar a dirigir nossos carrões. Olha o pai à janela!
Max, meu filho, acabo de chegar à tal janela…Veja-me.
Olhe para dentro de sí, veja as alegrias, os contentamentos, e também suas alegrias e seus contentamentos, e pense sobre meu convite: Filho, volta!
Obrigado, abraços.
Deus.
P.S: Seria bom se tivesse atendido o celular…(Haha).
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Ao terminar de ler curvei um sutil sorriso no rosto mas não por zombaria ou qualquer outro sentimento ruim, ou até mesmo por alegria, antes, por um que de fato não o reconheci naquele momento, e até hoje não o reconheço, mas que me fez ter ação resposta ao fato que me pôs pensativo: Ele se lembrou de mim.