Limpeza Urbana

Todo dia era a mesma coisa. Dulcicleide saía de casa às 5 e meia da manhã e pegava o trem para o serviço. Ia até a central onde se encontrava com as colegas, punha o uniforme e ia para a perua de transporte. Argemiro, o coordenador da turma das garis, ia sempre na perua com ela, jogando seu charme tão barato quanto sua colônia pós-barba, em sua amiga Marlúcia, mesmo sendo casado.

Dulcicleide era uma moça pacata, tranqüila mesmo. Morava com a mãe, viúva, num bairro afastado, na periferia de São Paulo. Morena, olhos castanhos claros, pele branca, levemente bronzeada pelo sol das ruas da cidade e um sorriso largo de dentes brancos e bem cuidados, lhe conferem um ar brejeiro, maroto, até infantil, apesar dos seus 26 anos. Muito embora o uniforme seja extremamente largo e desengonçado, um olhar mais apurado, mais demorado, permite vislumbrar o belo desenho de seu corpo. Trabalhava como gari havia dois anos e, até certo ponto, gostava do que fazia. Trabalhar na rua tinha lá suas vantagens e Dulcicleide sabia explorar bem todas elas. No começo, tinha sido muito difícil, e parecia haver mais problemas e percalços do que coisas boas no novo emprego. Mas, aos poucos, e com a ajuda da amiga Marlúcia, foi se adaptando e pegando as “manhas”, os “truques” de quem trabalha na rua. Hoje, até almoça de graça, dependendo da região ou da rua que varre. Outro dia ganhou uma blusa novinha em folha de um comerciante. Já ganhou cesta de Natal, buquê de flores, relógio, camiseta, boné. Suas colegas de perua ficam com uma inveja danada e o Argemiro vive chateando a pobre coitada: “Onde já se viu? Eu sou coordenador e ela que ganha as coisas!” diz, despeitado. Ela não achava que o que fazia era menos ou de menor importância que qualquer outro trabalho. Pelo contrário. Via passar nas ruas aqueles homens engravatados sob o sol escaldante e dava graças a Deus que ela não precisava andar tão cheia de roupas. Só acha ruim mesmo quando o dia está chuvoso ou muito frio. O dia demora a passar, parece que fica mais comprido, triste, enfadonho mesmo. Mas, tirando isso, só de poder pagar as contas no fim do mês e comprar os remédios da mãe, é um grande alívio. Até aprendeu a suportar a chatice do Argemiro.

Mas o dia, aquele dia, estava diferente. Ninguém parecia perceber nada e Dulcicleide não conseguia entender. Estavam indo para uma região da cidade que ela conhecia bem, mas mesmo assim, aquela sensação esquisita não passava. E ela não conseguia saber de onde vinha. Só sabia que estava ali. Às vezes, sentia até vontade de vomitar, tamanha que era e tão palpável que estava, parecendo que ia, a qualquer momento, explodir peito afora.

Chegaram ao destino e Dulcicleide e Marlúcia desceram. Apanharam vassouras e carrinho na perua de trás e foram cada uma para um lado, conforme instruções de Argemiro. Dulcicleide agora estava sozinha, varrendo, apanhando lixo da sarjeta, da calçada. A sensação aumentava a cada passo que dava. Tinha vontade gritar, sair correndo, arrancar a roupa, se jogar na frente dos ônibus que passavam. Mas sabia, no íntimo, que não era essa a melhor solução. Parou de varrer. Ficou ali parada, segurando o cabo da vassoura, mãos dentro das luvas, por segundos, minutos, horas talvez. O olhar vazio, a sensação aumentando. Então, como que por encanto, num átimo de segundo, ela sabia exatamente o que estava acontecendo e o que deveria fazer.

Final de tarde e a perua já estava se aproximando para apanhar Marlúcia e Dulcicleide, no mesmo lugar onde haviam sido deixadas horas antes. Dulcicleide deixou que a amiga colocasse seu carrinho de volta na perua primeiro e em seguida aproximou-se para colocar o seu. Pediu ajuda a um dos rapazes, que estranharam o carrinho tão pesado. Desculpou-se, justificando que era muita coisa para deixar para o caminhão do lixo. Deu de ombros e foi para a perua das moças, logo após Marlúcia. Haviam-se passado alguns minutos que estavam em movimento e a perua de trás começou a buzinar e a piscar os faróis freneticamente, fazendo sinais para que parassem. Encostaram, Argemiro desceu e foi ver o que estava acontecendo. Não conseguiu voltar. Marlúcia e as outras colegas de Dulcicleide, que curiosas, olhavam para trás para tentar entender a situação, viram Argemiro vomitando, do lado de fora da perua. Depois, viram-no, recuperado, pegar o celular e fazer uma ligação. Então, sentou-se na calçada ao lado da perua, com jeito de quem tenta se recuperar de algo sem desmaiar em seguida. Uma viatura da polícia chegou e ele levantou-se para conversar com os policiais. Puseram ambos as cabeças dentro da perua, como se examinassem algo e conversaram um pouco. Daí, eles vieram em direção à perua onde estavam Dulcicleide, Marlúcia e suas colegas. E levaram Dulcicleide.

Dias depois, ela ainda não sabia direito o que fizera e nem o que estava dentro daquele carrinho de lixo. Só o que sabia é que o tinha de fazer. Precisava. Devia. Era imperioso, mais forte que tudo. Naquele dia, naquela hora, ela fora chamada e a única coisa que conseguia visualizar era seu objetivo, sua meta, sua missão de vida. E mais forte que qualquer necessidade, era a certeza que tinha de fazê-lo a qualquer preço, não importando quão alto ele fosse. Mas tinha de fazer. E fez.

Só conseguiram identificar o corpo, que tinha sido mutilado em vários pedaços e que parecia ter sido mastigado e regurgitado, por uma pequena parte de uma digital de um dedo mindinho. Ele era um executivo. Desses famosos que aparecem até na TV. Mas era também mesquinho, corrupto e já tinha até mandado matar – mas sem que conseguissem provar – para fechar um desses acordos de negócio.

Dulcicleide quando soube o que aconteceu, entrou em choque. Depois se recuperou. Soube então quem era a vítima e, agora por trás das grades da janela que dá para o páteo, sorriu com o canto da boca. Mas não um sorriso qualquer. Era um sorriso de satisfação, de missão cumprida, de prazer mesmo. Mas ainda assim era um sorriso de dentes muito brancos e bem cuidados. Só que agora, um pouco manchados se sangue.