Ninguém vê o espelho
Adauto trabalhava como auxiliar de serviços de limpeza na empresa Terceiriza Ltda. que prestava serviços para o Banco Global S/A.
Como rotineiramente fazia, às 7 horas e 30 minutos da manhã, colocava o cavalete com a informação INTERDITADO à porta do sanitário masculino para que pudesse fazer a higienização do banheiro. Depois de limpar os vasos, alguns deles bem sujos pela negligência dos usuários que não davam descarga, Adauto varria o chão e passava um pano com o produto de limpeza cujo rótulo prometia um cheiro duradouro de lavanda. Feito isso, abastecia os recintos privados com papel higiênico e concluía com o asseio das pias e do espelho. Ele estava nesse último procedimento, quando, de repente, se encarou no espelho.
O olho esquerdo semifechado praticamente não funcionava mais. Deixava entrar apenas uma réstia de luz fosca de imagem distorcida, o resto era uma escuridão. O direito, focando o rosto murcho, desidratado, outra sequela dos tempos em que trabalhava na fundição.
O olhar desceu para o bolso do uniforme onde havia o triângulo amarelo, símbolo da Terceiriza Ltda. Lembrou-se da pirâmide social que viu há muito, quando cursou o supletivo. Adauto se encontrava na base ou, talvez, logo abaixo dela, na parte onde não havia nada além do tecido.
- Deixa eu trabalhar que é o melhor que tenho a fazer – murmurou para si mesmo voltando a esfregar o espelho.
Concluiu deixando-o límpido.
Notava-se pelo fato de não se poder ver o espelho, mas apenas o que ele refletia.
Ninguém vê o espelho, só sabe que ele está lá pelo efeito que ele causa: devolver o que lhe oferecem.
Adauto não resistiu e voltou a focar o olhar no olho que o encarava de volta. No espelho, era o contrário: o esquerdo era sadio e o direito doente.
Porém algo estranho começou a acontecer: o olho esquerdo de Adauto, no espelho, foi se metamorfoseando em uma boca que em pouco tempo já falava:
- E aí, meu cara, como está?
Adauto esfregou o olho direito, que no espelho era esquerdo, para livrar-se imediatamente daquela absurda alucinação.
Só faltava essa agora: ficar louco.
- Relaxa, meu cara, está tudo bem. Voceu não está delirando, muito pelo contrário – disseram os lábios que na realidade eram pálpebras.
- Quem é você? – perguntou ele a boca-olho com a boca-boca que tinha.
- Que é isso, meu cara, ou melhor dizendo, minha cara. Hehehe. Voceu sou eu, cara! – respondeu a imagem logo após soltando piscadelas de gargalhadas. A miragem tinha até senso de humor. – O problema é que voceu me olha sempre, mas não me vê nunca, então resolvi usar do recurso sonoro.
- O que... o que você qu... quer?
- Um papo rápido contigomigo. Tenho visto voceu meio chateado, triste, ultimamente. Sentindo vergonha do seu emprego. Olha, cara, voceu vale mais do que meia dúzia de deputados. Pense comigo: qual a diferença se esses políticos faltarem ao serviço durante 15 dias? Nenhuma, certo? Aliás, eles faltam mais tempo do que isso. Mas pense no seu trabalho, o que aconteceria? O fedor, a proliferação de bactérias, a quantidade de lixo que se acumularia aqui...
- Mas ninguém valoriza isso...
- Ninguém é muito, meu cara, digamos... a grande maioria. Seja como for, voceu está falando de grana, não é?
- Uai, é... também.
- Sobre dinheiro não falarei contigo. Falarei sobre algo muito mais valioso.
- O quê?
- Voceu.
- Eu?
- Sim. Já reparou como voceu limpa tudo aqui, coloca tudo em ordem, sugere produtos de melhor qualidade, porém não faz isso contigo?! Que tão limparmos seu interior, sua mente?
- Como?
- Ora assim como voceu pode fazer para tirar água suja de um balde sem tocar nele: jogando sempre água limpa.
- Como faço isso comigo?
- Comece por trocar alguns hábitos: está na hora de assistir menos partidas de futebol e programas idiotas de televisão. Vamos começar por um livro.
- Não tenho dinheiro para comprar livro. Meu salário mal dá para mim, minha esposa e minha filha...
- Vá à Biblioteca Pública!
- Não tenho tempo.
- Ah, não minta pra mim-nós, né, meu cara!
- Não consigo ler livro. Não gosto. Meu olho cansa.
- Ler é igual exercício, meu cara, no início dói, mas depois fica forte. Voceu precisa exercitar seus músculos de movimentos oculares horizontais. Rapidinho voceu se acostumará.
- Mas qual livro?
- Comece por Ensaio Sobre a Cegueira do escritor português Saramago, depois leia outro livro dele A Caverna.
- Mas eu não entendo.
- Insista! Sabe como você faz com aquelas sujeiras aqui no banheiro que não saem de jeito nenhum? Então, é a mesma coisa. Leia repetidamente, até que a coisa comece a fazer sentido. Os outros livros virão depois, quando seu paladar literário estiver apurado. Esses dois são só para afinar, entende?
- Mais ou menos. O que mais devo fazer?
- Faça também terapia!
- Tá brincando? Eu não tenho dinheiro e o serviço público...
- Existem boas faculdades que oferecem esse serviço gratuito. Encontre uma!
- Minha filha uma vez começou e ela parou porque a dona psicóloga não falava quase nada.
- Se acontecer isso com você, procure outra. E outra. E outra. Até achar uma boa. Não faz assim com os desinfetantes?
- E o que vai acontecer comigo?
- Voceu vai se ver sem espelho. Isso aqui reflete a imagem do que fizeram com você. É lógico, com uma mãozinha sua.
- Só isso?
- Só é pouco para tanto, né, meu cara!? Ver dói, mas é melhor do que ser cego – disse a boca-olho abrindo um sorriso que foi da raiz do nariz a base da orelha.
O olho esquerdo voltou ao tamanho e formato normais, como é o direito. O embaçamento começou a dissipar lentamente e as coisas começaram a ficar claras. Adauto, assombrado, sorriu.
Quando estava tirando o cavalete que interditava a porta do banheiro, deu de cara com o Tesoureiro.
- Ué, Adauto, seu olho! Seu olho está... está... normal.
- É.
- Você está enxergando?
- Estou começando a ver, aos pouquinhos.
- Então o olho vai ficar curado, você vai enxergar tudinho!
- Não sei.
- Ora, Adauto! Isso é uma coisa boa, não é?
- Também não sei.
Depois o Tesoureiro entrou. Fez a cagada de sempre. Se limpou e foi afrouxar um pouco a gravata que o sufocava.
Diante do espelho.