O pescador e a pedra
Pescuma caminhava pela estrada. Era destes andarilhos convictos, com a inabalável certeza de que não vale o esforço, qualquer que seja, para nenhuma outra atividade senão esta, a de andar sem rumo.
Afinal a vida é sem rumo, fruto do acaso, desde a concepção até à morte. Tudo obra do acaso e da sorte, coisa esta que Pescuma sequer sabia definir. Não tinha, verdadeiramente, nenhuma idéia daquilo. Na verdade não se lembrava de nada, nem da família, se é que algum dia teve uma, nem dos eventuais cachorros que pudesse ter tido na infância. Sim, pois o que é uma infância sem um bicho, sem um ser que dependa de você e goste da sua presença, que te ensine a solidariedade e o amor.
Pescuma não deve ter tido muitas experiências boas, pois não lembrava de nada. Apenas caminhava. Interessante o seu método, afinal até o caos o tem, porque Pescuma não haveria de ter. Voltemos ao método: ao acordar e se por de pé, isto todas as manhãs, Pescuma saia andando na direção para a qual estivesse voltado, pouco importando se voltava por onde houvesse vindo no dia anterior. Andava e era por andar que vivia. Não pensava em nada, apenas andava. Comia o que lhe dessem, sem pedir, ou o que encontrasse. E assim passaram-se os dias, os meses e os anos.
Pescuma foi envelhecendo. Vez por outra encontrava um companheiro de trecho, um cachorro perdido e até uma coruja machucada (da qual cuidou).
Estranho esse Pescuma, andava, andava e andava. Sem rumo, sem destino, sem necessidade.
Até que, sob forte tempestade um carro parou e com muito custo os ocupantes o convenceram a entrar. Recebeu roupas novas, comida, tudo isso depois de um banho e cortes de cabelo e barba. Sentou para pensar. Mas o que mesmo estava acontecendo? Estava lá, absorto, quando vieram e lhe deram uma injeção. Tudo ficou colorido e sem muita definição, quando entre nuvens pálidas surgiu uma figura feminina, nua e toda tatuada, coisa de comercial de creme, uma beleza. Esta mulher lhe deu um bilhete de cor azul, tipo: estás despedido. Dormiu perplexo.
Ao acordar se viu em uma espécie de hospital, do tipo que descrevem nas palestras espíritas que chegou a frequentar em troca de comida. Por já ter uma noção, não estranhou e foi logo tratando de se comunicar com a primeira pessoa que viu: Olá, será que poderia me fazer a gentileza de dizer aonde estou? O Ser nada respondeu, apenas apontou para a janela. Lá fora tinha um parque lindo cheio de pessoas caminhando e Pescuma pensou: é o paraiso, graças a Deus!
Um som estridente fez com que Pescuma se visse defronte a um enorme prato de comida, caprichosamente colocado sobre um bandejão de plástico acompanhado de gelatina e suco. Um pãozinho quente e exalando o doce aroma das padarias acompanhva o conjunto, mas não havia talher. Nenhum talher. Comeu com a mão. Após a refeição foi levado para um quarto aonde dormiu ouvindo Elgar.
Ao acordar não havia movido um centímetro sequer da beira de estrada. Sabia que havia chovido, poças de lama estavam a anunciar. Mas seu cabelo estava cortado, sua barba feita e a vontade de obrar não deixou dúvidas quanto às refeições que havia feito. Nada entendendo, pôs-se a caminhar.
Andou três dias sem parar, com medo de cada carro que por ele passou. Não sabendo nada do que aconteceu, Pescuma, exausto, sentou à beira de um regato e passou a contemplar a passagem da água. Concluiu que a água passava e não passava ao mesmo tempo. Estava lá, sempre igual, mas cada vez era outra. Sentiu-se Sidarta. Assim ficou até que imaginou-se pescando e fritando um peixe. Mas como haveria de fazer isso. Aguardou outros três dias até que uns garotos que por lá costumavam se divertir, apareceram. Descobriu tratar-se de um sábado.
Logo atrás vinham os tios, para pescar. Pescaram a tarde toda e Pescuma estava só olhando. Com dó do andarilho, a família doou dois peixes. O primeiro ele saboreou na fogueira e o segundo guardou no bolso.
Na manhã seguinte o peixe falou: por favor me coloque de volta na água, senão não vou sobreviver. Estupefato, Pescuma retrucou: Eu vou te comer, senão eu não sobreviverei, no que sentiu uma mão pousar carinhosamente em seu obro: e aí, vô? Como se sente hoje?
Como não houve resposta Jorge disse para a enfermeira que empurrava a cadeira de rodas: “ele parece mais alegre, mas continua sem reconhecer a família”... ao que a enfermeira, a dedicada Alessandra, respondeu: “Faz dias que apresenta um sorriso maroto, mas não conseguimos saber do que se trata. Apareceu uma droga nova, experimental, talvez seja isso. Os eletros mostraram uma atividade cerebral superior, mas ainda não se comunica com o mundo exterior”. Talvez amanhã.
Na luta contra a doença, a família já havia tentado de tudo, e enquanto rolava o papo, que a esta altura já vinha com uma conotação de flerte, Jorge e Alessandra fizeram a cadeira de rodas bater numa pedra e tombar. O susto foi imenso e Pescuma tombou como árvore sob a derradeira machadada. Levantou-se e disse para o velho de barbas longas, que estava ereto à sua frente: “Finalmente, não via mais a hora de me livrar daqueles chatos”.
No corre corre, que se seguiu na Clínica, constatada a morte, todos perceberam o semblante feliz, sereno e completo dos pacientes que se aglomeraram para celebrar a fuga de um deles.