Mistério No Boa Saudade
A mulher altiva e sensual penetrara no consultório sem se dar ao trabalho de se fazer anunciar pela secretária.
— Só vim comunicar que estou te deixando.
— O quê?
— É isso mesmo que você ouviu. Apaixonei-me por outro homem. Tu ficas dando tanta atenção a esses seus pacientes chorões, que ainda nem percebeu o que está acontecendo.
— Por favor, eu te amo! Sem você a minha vida não terá mais sentido.
— Não quero nem saber; cansei-me de estar casada com um fraco, sem nenhuma ambição. Ao dizer essas últimas palavras, a jovem de corpo esguio e espichado, rosto largo e grave, que tinha os cabelos louros atados em um coque, saiu batendo a porta atrás de si.
...dois anos depois...
O rapaz andarilho usava uma camiseta surrada e encardida, que outrora fora branca, e uma calça jeans desbotada, toda cheia de remendos. O velho chinelo havia arrebentado a correia, o que o obrigara a andar descalço durante todo aquele dia. Porém, o que mais o incomodava era o vazio no estômago; não que já não estivesse acostumado a ir dormir sem comer, mas dessa vez, iam-se dois dias sem engolir nada.
Passando defronte a um bar, indagou ao sujeito obeso que ia descendo as pesadas portas:
— Sobrou alguma coisa pra eu comer, Lucas? O homem o fitou sério e respondeu:
— Eu lamento, Jair. Hoje os fregueses estavam com muita fome.
— Então me arruma algo pra beber.
— Não acha que já tem bebido demais?
— Hoje não. Ainda tô sóbrio.
O gordo retornou ao interior do estabelecimento, alguns instantes depois, já estava de volta trazendo nas mãos uma garrafa de uísque barato que ficara encalhado na prateleira.
— Tome, Jair. É um presente. Agora trate de dar o fora, e vê se não me apareça mais por aqui. O jovem mendigo pegou a garrafa e se afastou sem nada dizer. Sabia muito bem onde iria usufruir seu precioso presente sem ser importunado.
Jair caminhava a passos firmes, estava novamente eufórico; parecia ter se esquecido completamente do estômago vazio. O moço era indiferente ao vento gelado que soprava naquele início de madrugada, sobretudo, era indiferente a todas as pessoas que o rechaçassem.
Após uns dez minutos de caminhada, Jair chega ao seu destino. O rapaz escala o muro com a agilidade de quem possui esse hábito há tempos, e pula para dentro do cemitério.
Nada de sustos ou medo: “são apenas ossos, que não podem me fazer mal algum”, pensava o maltrapilho.
Sentado na laje de um velho túmulo, Jair estava prestes a começar a sorver seu uísque, quando observou diante de seus olhos um vulto vaporoso que aos poucos foi tomando a forma humana, e logo o fantasma se tornaria bem nítido.
O espectro, um homem alto de porte elegante, que vestia um casaco marrom, e aparentava cerca de cinquenta anos, fez uma cara de desapontamento e comentou:
— Ah, meu filho! Precisa parar de beber e sair das ruas, pois sua mãe te espera.
— Pai, o senhor tá vivo!
— Mais vivo do que você, Jair. Escute, você é médico e tem um grande futuro, mas precisa parar de beber e voltar para casa.
— E o senhor também vai voltar para casa? — Inquiriu o rapaz confuso.
— Minha casa agora é outra, meu filho; não tenho muito tempo, por isso ouça: Pare de se lamentar e se culpar porque sua mulher te deixou. Em verdade, Amanda nunca te amou. Quando encontrou alguém mais rico, ela te deu o pé no traseiro.
— Puxa! É você mesmo, pai! Senti tanta falta desse seu jeito.
— Qual é o meu jeito, filho?
O moço deu um sorriso meio desanimado e prosseguiu:
— O senhor nunca foi de fazer rodeios, usando sempre da maior sinceridade.
— E ainda o sou, Jair, por isso eu te peço: chega de ficar sentindo pena de si mesmo. Volte para casa e procure retomar sua profissão enquanto ainda pode.
— Não é fácil, pai. Quando a Amanda foi embora, eu perdi minhas forças. Eu a amava muito, acredite!
— Eu sei, mas o amor só é bom para quem ama. Ame-se, meu filho, e se liberte de uma vez por todas da influência da sua ex-mulher. Lembre-se, ela também é livre para escolher seu caminho. Ame sem exigir, Jair, e talvez um dia você possa alcançar a ventura de se sentir verdadeiramente amado por uma mulher e filhos que o mereçam.
Jair fechou os olhos para melhor refletir: “não pode ser uma alucinação, meu Deus, pois nem provei a bebida”. Quando voltou a abri-los, o fantasma tinha desaparecido.
Quase maquinalmente, Jair largou a garrafa de uísque sobre a laje da antiga sepultura e se retirou do cemitério. Quando ia saindo, notou que um automóvel estava estacionando do outro lado da rua. Imediatamente reconheceu a bela senhora que descia do carro.
— Mãe! Estou aqui, sou eu mesmo, mãe.
Sem poder conter a emoção, os dois correram para o meio da rua — que àquelas horas estava deserta — e se abraçaram longamente. Dona Julieta tinha lágrimas nos olhos quando falou:
— Meu filho, graças a Deus e ao seu falecido pai eu te encontrei. Você não vai acreditar, querido, mas noite passada sonhei com seu pai. Ele me disse assim: “Julieta, meu amor, na próxima madrugada vá ao cemitério Boa Saudade e encontre o nosso Jair; não se assuste, ele está vivo”.
O jovem deu uma olhadela para trás, como a desejar confirmar o diálogo que havia mantido com o espírito paterno, em seguida, voltando-se novamente para a mãe, respondeu solene:
— Mãe, a senhora não irá acreditar se eu disser que acredito.