A MARCA
Eis que um dia em teu corpo a marca do futuro foi cravada. Não quero fazer previsões. Não mesmo. O que penso é em aliviar o que a vida quis te traduzir. Espero que tenhas conseguido. Teu frágil corpo, já ferido pelo passado que carregas, não precisava acumular também uma cicatriz física. Bastava a que levarias na alma, como uma mancha que os anos não apagariam.
Foi na manhã do descuido. Tua mãe era atenta guardiã, mesmo sem querer copiar o modelo das rudes que a guardiavam. Doce, terna, olhar vigil, compenetrada, águia vigiando o ninho do precioso filhote. Mas bastou um piscar, um respiro prolongado, uma distração, para que o fato acontecesse.
A mulher trazia a fera solta no coração. Seca de sentimentos ternos, invejosa, mantinha a atenção voltada para um possível descuido. Foi aí que aconteceu. Quando agitavas as pernas roliças no ar, ela passou e usou o alicate para furtar-te o dedo mínimo. Gritos e correria. As lágrimas de tua mãe não bastaram para aliviar a dor. Nem a tua nem a dela.
E o espírito da vingava pairou sobre a casa. Arregalou mil olhos, observou por algum tempo, depois se foi infiltrando. Em cada uma bramiu a asa. A corrente foi-se formando, unindo os elos, engrossando, rastejando de cela em cela até unir as pontas. Então, como ser metamorfoseado, de grande força, ergueu-se e tomou conta.
A noite foi de calor infernal. Embora as lâmpadas desligadas – era ordem da direção – a lua cheia espalhava luzes, espiava pelos cubículos onde desejos, amor, saudade, ódio, fome, maldade e vícios também se abrigavam e ninguém conseguia dormir. No ar, a energia densa, capaz de ser fisicamente sentida, quase que tocada, mas que não se tinha como fugir. E tu dormias, na inocência dos teus poucos meses. Somente tu. Era como se a serpente do mal te deixasse livre. Mas somente parecia. Nada, nem ninguém, foi poupado. Ao primeiro grito de fogo, o pânico correu solto, subindo e descendo escadas, entrando nos pavilhões, nos cubículos, em todas as dependências. E o sangue passou a jorrar. A primeira a ter a garganta cortada foi tua algoz. Fez-se vítima do estopim que ela mesma acendera ao ferir-te.
Foram tantos corpos carbonizados que a identificação tornou-se difícil. Fiquei muitos meses em coma. Quando abri os olhos para o mundo novamente, a primeira pergunta foi: onde está Raquel? E fui perguntando por muito tempo. Ainda hoje, mesmo livre das grades, sou prisioneira das lembranças, do terror, do fogo, da fumaça, do sangue, dos gritos. Nunca mais soube de ti nem de tua mãe. Muitas fugas aconteceram, na confusão que se formou. Fico pensando que um dia ainda possa te encontrar. Moça, talvez. Em meus pesadelos, tenho momentos de sonho, vendo-se correr em um campo, com os cabelos negros ao vento. Grito teu nome, para certifica-me, mas não respondes. Apenas adquiro a certeza de és tu, quando ergues a mão, num gesto de despedida, e vejo a marca.
Eis que um dia em teu corpo a marca do futuro foi cravada. Não quero fazer previsões. Não mesmo. O que penso é em aliviar o que a vida quis te traduzir. Espero que tenhas conseguido. Teu frágil corpo, já ferido pelo passado que carregas, não precisava acumular também uma cicatriz física. Bastava a que levarias na alma, como uma mancha que os anos não apagariam.
Foi na manhã do descuido. Tua mãe era atenta guardiã, mesmo sem querer copiar o modelo das rudes que a guardiavam. Doce, terna, olhar vigil, compenetrada, águia vigiando o ninho do precioso filhote. Mas bastou um piscar, um respiro prolongado, uma distração, para que o fato acontecesse.
A mulher trazia a fera solta no coração. Seca de sentimentos ternos, invejosa, mantinha a atenção voltada para um possível descuido. Foi aí que aconteceu. Quando agitavas as pernas roliças no ar, ela passou e usou o alicate para furtar-te o dedo mínimo. Gritos e correria. As lágrimas de tua mãe não bastaram para aliviar a dor. Nem a tua nem a dela.
E o espírito da vingava pairou sobre a casa. Arregalou mil olhos, observou por algum tempo, depois se foi infiltrando. Em cada uma bramiu a asa. A corrente foi-se formando, unindo os elos, engrossando, rastejando de cela em cela até unir as pontas. Então, como ser metamorfoseado, de grande força, ergueu-se e tomou conta.
A noite foi de calor infernal. Embora as lâmpadas desligadas – era ordem da direção – a lua cheia espalhava luzes, espiava pelos cubículos onde desejos, amor, saudade, ódio, fome, maldade e vícios também se abrigavam e ninguém conseguia dormir. No ar, a energia densa, capaz de ser fisicamente sentida, quase que tocada, mas que não se tinha como fugir. E tu dormias, na inocência dos teus poucos meses. Somente tu. Era como se a serpente do mal te deixasse livre. Mas somente parecia. Nada, nem ninguém, foi poupado. Ao primeiro grito de fogo, o pânico correu solto, subindo e descendo escadas, entrando nos pavilhões, nos cubículos, em todas as dependências. E o sangue passou a jorrar. A primeira a ter a garganta cortada foi tua algoz. Fez-se vítima do estopim que ela mesma acendera ao ferir-te.
Foram tantos corpos carbonizados que a identificação tornou-se difícil. Fiquei muitos meses em coma. Quando abri os olhos para o mundo novamente, a primeira pergunta foi: onde está Raquel? E fui perguntando por muito tempo. Ainda hoje, mesmo livre das grades, sou prisioneira das lembranças, do terror, do fogo, da fumaça, do sangue, dos gritos. Nunca mais soube de ti nem de tua mãe. Muitas fugas aconteceram, na confusão que se formou. Fico pensando que um dia ainda possa te encontrar. Moça, talvez. Em meus pesadelos, tenho momentos de sonho, vendo-se correr em um campo, com os cabelos negros ao vento. Grito teu nome, para certifica-me, mas não respondes. Apenas adquiro a certeza de és tu, quando ergues a mão, num gesto de despedida, e vejo a marca.