DIA DE CÃO
 
Abriu a janela e respirou fundo. Do jardim, as flores presentearam-na com perfume. Voltou-se e ficou contemplando o quarto. Seu quarto. Tivera dificuldade em conquistá-lo. Somente depois de trabalhar duro, de ajudar nas despesas da casa é que conseguiu.
Olhou para o céu, para além da lua, e manifestou um mudo agradecimento. Já se acostumara a dormir à tarde e pedaço da noite. No começo, foi árduo. Quando tinha de sair para o trabalho, sentia uma tristeza fininha, doída, de ter de levantar, enquanto os demais iniciavam o sono. Seu organismo reclamava, dando-lhe cansaço exagerado e uma sonolência que a atrapalhava nas atividades.
Espreguiçou-se, foi para o banho cantarolando e continuou também ao se vestir. Gostava do trabalho. Há dois anos que lidava com o público da telefonia celular. Alguns engraçadinhos, com propostas e piadas idiotas atrapalhavam. Somente isto. No mais, gostava de ajudar, esclarecer, informar com carinho, principalmente quando se trata de idosos. Pensava na Vó Bianca a se queixar que os jovens não têm paciência e respondem além do que quer saber, sem se importarem se está entendendo ou não.   
Já vestida, pôs-se em frente ao espelho. Rímel e batom, brincos quase tocando os ombros, calça abaixo do umbigo, míni blusa, cabelos até a cintura. Girou sobre os calcanhares e sorriu, satisfeita com a imagem. Pegou a bolsa e desceu a escada, cuidando para que o tamanco não fizesse barulho para não acordar o pai. Desde o derrame, não era mais o mesmo. A mãe, tinha certeza, estava aguardando que saísse, como todas as noites, para dar-lhe um beijo e dizer Deus te acompanhe. Era como um ritual. E ainda, apesar do tempo, dizia do perigo da noite, por que não mudava de emprego, será que não merecia uma transferência para o trabalho diurno etc. etc.. Deixa assim, mãezinha, gosto — dizia, acariciando-lhe os cabelos e beijando-a, pedindo que fosse dormir, que ficasse tranquila, que iria feliz com sua bênção.
Quando começou a trabalhar, hesitou. Tinha insegurança ao sair à noite. Mas, à medida que os meses foram passando, acostumou-se. Algumas noites, o namorado acompanhava-a. Depois, dispensou-o. Além do mais, Sérgio passou a fazer faculdade noturna.   
Rex acompanhou-a até o portão, rodeando-a, dando pulos, como se pedisse colo.
— Hoje, não - foi dizendo. - Não quero me atrasar.
 O cão latiu e deu um uivo.
— O que houve? Estás com alguma dor?
Fez-lhe uma carícia. Os olhos do animal estavam baixos, como se não a quisessem encarar.
— Ficou zangado, foi?
O uivo repetiu-se. Pensou em voltar e pedir para a mãe dar uma olhava no pobrezinho, mas desistiu.
— Amanhã, cuido de você.
Fechou o portão. Novos uivos foram acompanhando-a, até o carro dobrar na esquina.
Dirigiu com especial cuidado, com o sentimento de que Rex avisava-a de algum perigo, pois nunca havia se comportado de tal forma. Normalmente, ia até o portão, ficava olhando-a e abanando o rabo, num até logo.
Mas tudo correu bem.
O primeiro telefonema foi de um homem.
— Seu carro é o de placas AMJ 2049?
— Sim. Qual é o problema?
— Dei um arranhão. Estarei esperando na saída, para acertarmos. Desligou.
Então, foi isto que o Rex tentava avisar? Seu carro estaria destruído? E ainda nem conseguira pagá-lo. Que azar.
Logo em seguida, foi uma ligação atrás de outra. Nem teve tempo de pensar e muito menos condições de ir até a garagem para ver o estrago. Somente voltou a se lembrar do fato quando saiu. Perto do carro, estava um rapaz bem vestido, perfumado e sorridente, desmanchando-se em desculpas pelo transtorno. No carro, somente um arranhão.
O jovem disse que iria com ela até a oficina autorizada, logo na saída da cidade, onde o dono era seu irmão. Iam pela auto-estrada, numa conversa alegre, quando o rosto dele ficou transtornado. Uma barreira policial à frente, era o motivo da contrariedade. Pediu que parasse, pois precisava descer. Havia  se lembrado de um documento importante que tinha deixado no carro. Tomaria um táxi e em seguida iria ao seu alcance. Logo, logo mesmo, voltaria, ainda a tempo de tomarem um café, enquanto o veículo seria reparado. Sujeito maluco, pensou, mas tem um nome bonito:  Pedro Henrique.
Policiais armados revistavam os carros. Havia fila e a demora preocupava-a. Estava com sono, doida para voltar para casa e dormir. Por que não deixei para a tarde o conserto do carro? Agora, não tem jeito. É melhor rezar para que não demore muito - murmurou.
Foi observando que nenhum carro passava pela barreira sem ser meticulosamente revistado. A quantidade de veículos atrás dela ia aumentando. Finalmente, depois de umas cochiladas, chegou a sua vez.
Sorriu para o policial e entregou os documentos. Olhou-os sem muito interesse, os olhos voltados para a pasta no banco ao lado. O homem pediu-lhe que descesse. Dois outros lhe seguraram fortemente os braços. As coisas foram se passando com rapidez, impedindo-a de raciocinar. Com a pasta aberta, o policial perguntou:
— O que é isto aqui? -  mostrando o pó branco, ao mesmo tempo em que lhe desferia um tapa no rosto. A dor, a surpresa e o medo fizeram-na verter lágrimas abundantes.
Pedro Henrique havia dito que quando chegasse na oficina, perguntasse por Josué, o dono, e entregasse a pasta, que deixaria sobre o banco, Era um presente para o irmão; tivesse cuidado com ela.
Os homens algemaram-na. As armas apontadas, todos falando ao mesmo tempo, muitos rindo, satisfeitos com a ação, impedindo-a de explicar, arrastando-a, algemada, para o camburão.
O Rex uivando.



 
 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 13/07/2013
Reeditado em 15/07/2013
Código do texto: T4385263
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