O CEGO INCORRETO
"O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!"
Mario Quintana
Depois da caminhada da tarde, sento numa mesa de bar e peço uma cerveja.
Fico bebericando.
Não vai demorar e chegarei a conclusão de que a imaginação humana é ilimitada.
Quem me levará a esta dedução é o cego que chega, de paletó escuro no calor infernal de Araçatuba.
Carrega uma pequena sanfona na mão.
Por que será que todo cego sanfoneiro usa paletó?
Ou será imaginação minha?
É como diz meu amigo Eliezer, imaginação é um depósito de idéias, de que são donos os escritores e os mentirosos.
Cervejinha gelada, lugar tranqüilo, tô de bem com a vida.
O cego encosta-se na porta do bar, dá uma aspirada de ar com o fole da sanfona e ...
"Tenham dó de mim". Grita o instrumento.
"Temos pena de você". Respondem as teclas.
"Tenha piedade de nós!". Pensamos todos no botequim.
Confesso que considerei verdadeiro o ditado: "sanfona não é instrumento musical, mas de tortura".
Não demora o dono do bar aproxima-se do sanfoneiro, cochicha no seu ouvido e passa-lhe uma nota de real.
Malandrão.
Desculpem, sei que ele tem que ganhar a vida de algum modo.
Mesmo assim, malandrão!
Termino a cerveja, vou embora, ando dois quarteirões e encontro o cego sentado numa mureta de tijolos brancos na Rua Cussy.
Não resisto; sento ao seu lado.
"O dia rendeu?"
"Tá só começando, hoje é sexta e minha minha ronda é noturna..."
Que sentimento nos unia?
Empatia.
"Antigamente me aborrecia quando acontecia receber para parar o espetáculo. Com o tempo percebi que rende mais dessa maneira."
"E quando não lhe mandam embora?"
"Sempre tem alguém que coloca alguma coisa no chapéu."
"Como aprendeu a ganhar a vida assim?"
"Foi num sonho."
"Quer ouvir?"
Já era noite e ele usava óculos escuros, olhava fixo para a frente e, de vez em quando, batia com a bengala no chão.
Igual a cego de cinema.
Só não balançava a cabeça prá-lá e prá-cá, como cego americano.
"Uma noite sonhei que tinha talento para a música. Que eu tinha uma sanfona e dava grandes recitais. Não como Luiz Gonzaga. Não, não...
O "Lua" era ótimo. Eu sou péssimo!
Quando eu terminava os meus espetáculos não havia mais ninguém na platéia.
Todos haviam ido embora."
"Aconteceu coisa igual no último show do Nando Benny no Credicard Hall de São Paulo.
Ficou sabendo?"
"Então eu ficava a fitar a platéia vazia, com tristeza imensa."
"Um dia, anjos e querubins, figuras iguais às que a gente vê nas ilustrações feitas por pintores renascentistas, desceram sobre mim, pegaram-me no colo e levaram-me para o céu.
Um lugar lindo, lindo..."
"E, no meio daquele parque florido, maravilhoso, estavam reunidas milhares de pessoas, todas de branco e azul.
Os anjos e querubins depositaram-me num palco, no centro daquela multidão."
"Eu com a sanfoninha na mão."
"Ao meu lado do nada surgiu um homem que só de sentir dava para perceber que era poderoso."
"E com voz de trovão convidou-me a tocar:
"Cante cego, cante. Estamos reunidos para ouvi-lo".
"Comecei a tocar a sanfona e a cantar.
Cantei todo o meu repertório.
E as pessoas todas imóveis; ouviam-me".
"Quando terminei, fui ovacionado:
"Bravo! Bravo! Bravo!"
"Fiquei muito emocionado !"
"Bem... ai, aquele homem, o grande criador das coisas, achegou-se mais a mim."
"Cego" - disse ele.
Pediu silêncio à multidão.
A multidão calou-se.
"Cego" - repetiu ele com aquela voz imensa que é ouvida por todo o universo.
E colocou as duas mãos sobre mim, uma em cada ombro, encarou-me e disse:
"Cego... vai cantar mal assim na puta-que-o-pariu !!!"
"A multidão voltou ovacionar-me ..."
"Aprendi que a gente nem precisa ser muito bom naquilo que faz, desde que faça com fé".
Ele levantou-se encerrando a conversa e disse que tinha que continuar o trabalho.
Dei-lhe dez reais, que dobrou e guardou no bolso, sem olhar para a nota.
Continuei pelo meu caminho cantarolando um rock dos "Titãs":
"Eu não sei fazer música
Mas eu faço
Eu não sei cantar as músicas que faço
Mas eu canto
Eu não tenho certeza
Mas eu acho
Eu não sei o que falar
Mas eu falo
Ninguém sabe nada..."
(“Eu não sei fazer música”, Titãs)
Só quando cheguei em casa, ocorreu-me recordar a narrativa do cego:
"... anjos e querubins, iguais às figuras que a gente vê nas ilustrações de pintores renascentistas..."
Como assim, "a gente vê"?
E que diacho um cego diz: "... Ficava a fitar platéias vazias..."
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Obrigado pela leitura.
Araçatuba-SP, julho / 2013