A morte cega
A vila passou pela modernização, evoluiu no modo de se fazer as coisas. Mas tem arraigada a visão de si, de como ser perfeita. Nos seus limites o futuro pode ser previsto uma vez que está ensaiado à exaustão, repetido ainda que de forma diferente.
O carrasco foi à guilhotina para unir as partes do destino, misto de raiva e pavor desejando executar a justiça para o bem dos outros e, imagina, de si. Derrubou a lâmina deixando a cabeça rolar sem graça e o corpo cego para a eternidade. Por conveniência arrependeu-se pelo inevitável mas também pela vida que o levara ali.
À tarde da execução acorre muita gente. A justiça é um espetáculo de grande interesse, seja na forca daqueles tempos, no paredão dos fuzilados, locais onde erradicam-se os podres e a parte inocente dos homens. O ruim incrusta o bom, ignoram. A natureza soma os imperfeitos, crêem. Então o julgamento vai reparar o erro, redundará na morte. A vila comemora.
As manchetes não esmiúçam, forçam o convencimento, os Autos avolumam no foro íntimo. O instrumento que mata é cego.
Cegueira transversal proporcionada pelo capuz que impedia a identificação do carrasco ou que, noutra feita, tirou a personalidade do enforcado no rito dos justos. Cegueira da escuridão para a qual especialistas carregam lanternas focando detalhes.
Cavalo de Tróia, ovo de páscoa, fartas palavras, coisas estranhas recheiam o que é feito vazio. Homens carregados de impropriedades expelem a vida.
E ainda devemos dizer a verdade, uma lenda jamais confirmada. Não me atrevo.