MANHÃ DE INVERNO
 

Há muito perdi o jeito que eu tinha de admirar as coisas simples, estar em contato com a natureza, ter os pés, literalmente, no chão. Mas tenho gravado em meu ser uma saudade aguda do que lá ficou, do correr pelos campos, na manhãzita, do cantar dos galos, do leite quente, espumante, direto da Malhada, e até do cheiro de bosta. Não riam. É isto mesmo.

A cidade poliu-me, fez-me vestir terno e gravata, que não têm o conforto do lenço amarrado no pescoço e da bombacha. Do amargo, não me desvencilhei, isto não. Nas manhãs, antes de o sol despontar, vou cevando o mate e, enquanto a chaleira chia, transporto-me, mentalmente, para o rancho distante, por onde não mais apeei, que já nem mesmo existe, e transito por lá, respirando o cheiro da terra, da grama orvalhada, do canto dos quero-queros, da revoada de pássaros, dos porcos no chiqueiro.

E quando o celular toca, encontro-me de cuia na mão, vestido de executivo, para mais um dia atrás de uma mesa, num escritório de bom gosto, chic, sem vestígios do passado, com um sorriso profissional e uma dor dilacerante. No calendário sobre a mesa a chamada para a retrocessão.

Era inverno. O dia amanhecera com neblina fechada, mas o sol dissipou-a, tornando a temperatura amena. Marcação de gado, festa, alegria, parentes, amigos, vizinhos, hora de assar a carne, na vala preparada de véspera.

Eu correndo de um lado para o outro, com vontade de me meter em tudo, guri cheio energia. Mas voltava de pouco a pouco para o lado do velho, meu líder, meu pai, para abocanhar as lições práticas.

Foi aí que recebi a incumbência de ajudar a espetar o churrasco. Que alegria, senti-me um homem, igual aos demais, com o lenço no pescoço e uma bombacha novinha, no capricho, o chapéu caído nas costas.

Num daqueles passa espeto pra cá, passa espeto pra lá, aconteceu. O pai veio e eu fui. O espeto furou a barriga do velho. Foi um griteiro. Enquanto socorriam o ferido, fugi para o mato, embrenhei-me, corri sem direção, sem cuidar com galhos ou espinhos, num desespero de dar dó, até me encontrarem.

Meu pai mal, em coma. Não quis vê-lo. Nem mesmo no caixão tive coragem de olhá-lo, dar-lhe um beijo. Eu era o assassino do homem que me gerara, que eu amava acima de qualquer coisa.

Após o enterro, tomei a direção da cidade. O pago ficou chorando, numa chuva fina. Fugi da terra e das lembranças. Não, das lembranças não. Elas me chicoteavam até dilacerarem e não me davam sossego. O guri que fui ficou enterrado com o pai, no cemitério da colina, onde a sombra do ipê dá-lhe o repouso.

Hoje, é o velório do meu tio. Não que eu tenha esquecido, jamais. Apenas a dor atenuou-se, envolvida pela bruma dos anos.

Nunca mais fui a um velório. Mas meu tio era especial e, além de tudo, a cara do velho. Não podia faltar. É difícil lidar com parentes, abraçar. Sinto que em cada abraço visualizam meu crime. Tento sorrir, retorcendo a boca num esgar.

A noite não passa, a mente não para, a dor acompanha-me.

Finalmente, é hora do enterro. Sinto-me pesado, atarracado, como se carregasse chumbo. O féretro vai passando entre as alamedas, nos soluços.

Mantenho-me um pouco afastado. Estou revivendo algo que me crucifica, também os olhares me crucificam. Mas não desisto. Não vi enterrar meu pai, mas, meu tio, verei. É como se estivesse me redimindo. Pode ser besteira, no entanto, sinto que preciso.           

Quando o caixão é colocado, um grupo canta uma ave-maria. Baixo a cabeça, mirando o bico do sapato. Depois, como se sentisse um olhar fixo em mim, levanto a cabeça. Observo umas pessoas que não vira antes. Estão meio nubladas. Tiro os óculos, limpo, o coração aos saltos. Coloco os óculos.  O grupo está no mesmo lugar e sorriem de uma forma doce, acolhedora. Tento visualizar cada rosto, mas estão esmaecidos. Mesmo assim, reconheço meus avós paternos, um tio, um irmãozinho, mortos há anos. Havia mais uma pessoa, que tive maior dificuldade de identificar, e quando o fiz, dei um grito. Os presentes se voltaram, perguntando o que aconteceu. Tentei disfarçar, dizendo que havia batido com o rosto num túmulo. Olhei novamente, e o rosto de meu pai tornou-se nítido. Sorria. Os demais sorriam, também.

Atiraram um beijo e... sumiram.



 



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 24/06/2013
Reeditado em 24/06/2013
Código do texto: T4356437
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