AMOR DE MÃE
 
— Mãezinha, quero te apresentar o Ricardo.
— Muito prazer. Por favor, entre. Seja bem-vindo a nossa casa. Lalinha fala tanto em você que já me punha curiosa.
 Mamãe tinha a mesa pronta para o lanche. Conversamos, rimos, comemos. Foi alegre a entrada de meu namorado em minha residência. Quando nos despedimos, ele falou.
— Sua mãe é mesmo especial. Você tinha razão. Que acolhida, que carinho. Lamento não poder repetir a cena com mamãe.
— E por que não? Sua mãe não quer me conhecer, é isto? Pode deixar que irei conquistá-la. Pra começar, vou levar um presente. Diz o que ela gosta. Flores, quem sabe? Ou uma roupa? Já sei, perfume. Toda mulher adora.
Já pensávamos em noivar, sem que tivesse conhecido Dona Laura.  Era só planejar uma visita e ele arranjava uma desculpa: a mãe viajara, tinha um chá com as amigas, pegara gripe, fora fazer compras.
— O que há? Estás com medo de alguma coisa? Não entendo. Ficas te rasgando em elogios, dizendo que tua mãe é maravilhosa, a melhor mãe do mundo, mas não me levas para conhecê-la. É ciúme, benzinho? Não vou roubá-la. Já tenho a minha, tá?    
Lá vinham as mesmas desculpas. Os planos para o noivado e casamento iam de vento em popa. Por um tempo, até esquecia de Dona Laura. Mas, finalmente, chegou o dia. Confesso que senti um medo danado. E se não gostasse de mim, se fosse estúpida, uma megera?
Que surpresa. Laura, foi assim que exigiu que a chamasse, ultrapassou as expectativas. Gentil, carinhosa, recebeu-me como a uma filha. E disse isto. Ricardo era filho único, e ficara viúva quando ele contava apenas seis meses. A partir de então, viveu somente para ele. E era toda melosa ao falar:
— É o único homem da minha vida, não é querido? Agora terei também uma filha. Como sou feliz.
Enquanto falava, uniu nossas mãos e abraçou-nos, depois  me beijou as faces. Quando a olhei, havia lágrimas, que tentou disfarçar rapidamente. Gostei dela. Seria uma boa sogra.
Fomos nos envolvendo com o noivado e logo com o casamento. Todas as vezes que encontrava Laura, recebia o mesmo carinho. Ela me olhava demoradamente no fundo dos olhos, como a procura de algo. Estranho. Devia estar me avaliando, querendo saber se cuidaria bem de seu tesouro. Mesmo no sorriso, transmitia-me uma sensação de tristeza. Mas era fugaz. Logo me punha a conversar sobre coisas alegres, a festa, a viagem, a casa, os móveis. Tinha tanto a resolver.
Ricardo não quis viajar para longe. A lua-de-mel foi rápida. A mãe não podia ficar sozinha. Além do mais, não houve uma noite em que ele não tivesse pesadelo. Gritava:
— Não, mamãe, não. Ela não pode saber. Não pode.
Acordava suado. Olhava-me como se tivesse visto fantasma, e custava a me reconhecer.
— O que houve? O que não posso saber. Por que é sempre a sua mãe no pesadelo.
— Não sei. Foi só um sonho mau. Já passou.
Na noite seguinte o mesmo se repetia. O olhar dele era como se tivesse medo de ter falado demais.
Voltamos logo. Mal chegamos, telefonou. Isto que passou a viagem fazendo o mesmo, até quando estávamos na cama, nos amando. À noite, foi visitá-la. Quando retornou, encontrou-me dormindo. No dia seguinte, perguntou:
— Você dormiu cedo, Lalinha?
— Nem sei. Acho que sim. Queria te esperar, mas o cansaço não deixou. Que horas voltaste?
— Logo em seguida.
Não sei por que, mas a maneira como desviou o olhar me disse que havia uma mentira. O que teria acontecido? Mas eu ainda me encontrava sob a euforia da viagem, do casamento, do amor, dos carinhos do meu marido. E pensei: deixa pra lá. Beijei-o com ardor, e nos envolvemos sob os lençóis.
Na rotina de nossa vida, algo havia mudado. Agora, não conseguia que minha sogra viesse nos visitar. Repetiam-se as desculpas. Íamos à casa dela, para almoços, jantares, sem haver retribuição. Era carinhosa, especial, fazia o que o filho pedia, abraçava-me e voltava a me olhar com aquele algo que me incomodava, mas que não me vinha à consciência. Logo eu me envolvia com outros pensamentos.
Algumas noites, Ricardo trabalhava até mais tarde e me deixava sozinha. Ele explicava, e eu compreendia. Mas não gostava. Veio a gravidez. Era a felicidade. Estávamos radiantes com a chegada de nosso bebê.
Hoje, percebo que eu é que estava feliz. Meu marido passou a ter atitudes estranhas. Ficava com o olhar parado em minha barriga, imóvel, com o rosto transformado, como se estivesse olhando para algo feio, terrível. Quando questionado, respondia, sorrindo, desfazendo a expressão de dor:
— Estava admirando nossa menina, imaginando como será?
— Menina? Por que menina? Pode ser um garotão.
A dor novamente estampada, fazendo vínculos nos lábios dele.
— Não, menino não. É uma menina.
E baixando a voz:
— Tem de ser uma menina.
— Engraçado. Pensei que todo pai quisesse sempre um filho homem, um garoto para jogar futebol com ele, um companheiro.
— Pois fujo da regra.
Agora, os pesadelos se acentuavam.
— Não mamãe, não pode, menino não. Seria terrível. Não quero.
Emagreceu, tinha insônia, inapetência, olhava-me com desespero, chorava pelos cantos, até o dia em que foi feita a ecografia.
— Menina, disse o médico.
Ricardo pôs-se a soluçar. Emoção, pensaram os presentes, somente eu sabia que chorava de alívio, embora não entendesse o porquê.
A alegria voltou ao nosso lar. Por uns meses, deixou de fazer horas extras. Depois retomou. E ainda se atrasava mais, por ter de passar antes na casa da mãe. Comecei a ficar preocupada, porque tinha carência dele a meu lado, tinha medo que o bebê viesse fora de tempo e estivesse sozinha em casa. Muitas vezes, não o via chegar. Somente pela manhã é que podia vê-lo.
Uma noite, senti vontade de tomar sorvete. Pensei em ir à empresa para sairmos juntos, caminhar um pouco e matar meu desejo. O calor era infernal.  Desci do táxi e entrei no edifício. O porteiro olhou-me com surpresa.
— Vim buscar Ricardo.
Disse e fui entrando. O rapaz seguiu-me.
— Desculpe, dona, mas o Dr. Ricardo não está.
— Como não está? Tem certeza? Ele faz horas extras.
Não esperei resposta. A sensação de vertigem fez com que me segurasse na porta. Pedi que chamasse um táxi. Sabia onde encontrar meu marido. Alguma coisa feia desorganiza-me as ideias. Pensei que fosse fruto da gravidez, da surpresa de tê-lo descoberto em mentira, de cenas que até então me pareciam natural, mas que, agora, passavam a me intrigar. Maquinando, passei em casa e peguei a chave. Um fragrante era meu objetivo.
Queria pensar que tudo era produção exacerbada da minha mente, que os livros de ficção, pelos quais era apaixonada, faziam-me fantasiar, ver chifres voando. Mas nada me acalmava.
Fui abrindo a porta com cuidado. Pé-ante-pé percorri o corredor, com uma direção certa: o quarto. Quando me aproximava, a esperança de que tudo fosse loucura da minha cabeça foi-se esvaecendo: sussurros, gritinhos, lamentos, gemidos.  Entrei.
Nua, sobre a cama, Laura demonstrava o amor de mãe. 





 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 20/06/2013
Reeditado em 21/06/2013
Código do texto: T4350598
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.