Resiliência

.:.

As noites são o tormento de quase todas as agonias. Sonambulismos. Os crimes roncam num ronronar incômodo para os tardios transeuntes; e as ruas, as frívolas passarelas de saias e vestidos soltos ao vento, ao nascer do dia, provocando arrufos de curiosidade, agora acomodam corpos silenciados pelo calor da pólvora.

Ainda hoje, antes do horário reservado às donzelas; quando se escondem e se protegem dos sedentos caçadores, Esmeralda, a moça mais cheia de sedutoras curvas do bairro, brindou-nos a todos desfilando com passos fagueiros, meneios deslumbrantes, altivo olhar... Ela sabe exatamente o resultado da oportuna e ansiosamente esperada aparição. As cabeças cedem ao poder atrativo: todas se voltam para ela, fixando o ângulo de visada no que se esconde à linha da cintura, no verso e no reverso, daquela beldade. O vestido de toile de soie azul, curto, denotando intenção afável e pueril, contrasta com os devaneios lúgubres dos marmanjos da praça. Pedro Delmiro era o mais incontido e suspirava de contentamento. Éramos sonhos coletivos buscando o tesouro único da feminilidade discreta. O tempo, traiçoeiro e caçoador, entretanto, soprava fina brisa, incapaz de erguer a suave seda azul que nos conduziria ao céu do estouvamento merecido.

“São lindas aquelas curvas!” – foram as únicas palavras a romperem o silêncio. Digno elogio de Pedro Delmiro.

As ruas do bairro estavam sem asfalto. A passarela, em forma de calçamento inacabado, naquele fim de tarde de domingo, servia de tempero e tira-gosto para a cachaça caseira do botequim do Seu Chiquinho – velho diabético que perdera um dos dedos do pé esquerdo por causa da maldita enfermidade. A sede e a fome daqueles homens gulosos estavam fora das mesas. Os pratos estavam postos, mas todos pareciam pedintes suplicantes.

Quando Esmeralda sumiu, deixando saudade, e os beberrões se voltaram para assistir ao jogo na tevê, o placar havia mudado: estava de um tento a zero para o time rubro-negro.

Certeiro, também, foi o comentário de Dona Nicota, já noutro ponto da rua. Viúva aos 27 anos, era a mais bem informada e badalada senhora dos arredores. Ao avistar a moça passando, solta o venenoso colóquio para todo mundo da calçada ouvir e concordar:

– Eita, que menina bendita! Que vestidinho esgarçado duma figa! Essa daí separa até noivo depois do sermão do padre Faio, na hora do casório, já com o “sim” na beirada da boca!

.:.

Coitado do Nicanor. Era homem bom, educado, prestativo – a esposa, a viúva, era por demais caridosa, muito mais que o marido, mas o altruísmo do padeiro comovia vizinhos e desconhecidos. Morreu cedo demais, 33 anos, verdadeira crucificação. Teria sido o tal do desgosto?

Foi direto para o céu, coitado! – diziam todos, cerrando os dentes.

Aturar Dona Nicota e as manias dela quando o marido virava a madrugada fazendo pão, era tarefa difícil; fardo pesado, ombros cansados.

As estripulias de Dona Nicota davam um zunzum que só cego de nascença para não perceber! Certas safadezas, porém, os cegos sentem, pois os rastos da sem-vergonhice deixam odores assimilados por olfatos atentos.

“Qualquer casório carece de tempero para se suster depois que essa flor põe o tornozelo de cristal junto ao sapatinho enfeitiçado do desejo!”. “Ai do marido alvejado por esse olhar de anjo! Aliás, ai da esposa!” – essas eram algumas das profetizações de Dona Nicota.

As outras mulheres, sempre atentas, espreitavam o cortejo vivaz dos parceiros, antepondo-se à visão deturpada que nós homens, intimamente criamos, sobre dorsos femininos de outras mulheres. Despeito?

Na vila onde o povo se juntava todo para testemunhar o nascimento dos moradores, o crescimento das moças merecia festividade de olhares, desejos, reflexões, medos. Respeito é bom para quem gosta, mas o sabor da loucura respinga nos efêmeros castelos de areia que foram expulsos do extinto vulcão! O fogo arde, mas vira cinzas ao descer a escarpada montanha. E o valor das cinzas aspiradas está na agonia e no pânico que causa. É a fumaça que nos ata e não o fogo. Ele apenas nos aparta. Ironia?

Esmeralda chega ao destino. Recebe o abraço da avó, ainda no portão, e entra. Dois beijos. O dia, sôfrego, desaparece apressado. E a noite, sonolenta, inicia nova prontidão, refletindo a luz da vida e a malandragem da penumbra disfarçada de escuridão.

Gatos e gatunos disputam migalhas noite adentro: aqueles, sutilmente, percorrem telhados, ruas e avenidas; estes, sorrateiramente, desmoronam portas e janelas; surgem do nada e, sem remorsos, interrompem sonhos, criando, nas mentes traumatizadas dos que ficarem, fantasmas existenciais acerca dos que partiram. A carne podre que sobrara do lixo de Dona Zuleide, deliciosa picanha avidamente degustada por ela, recém-viúva do Dr. Jorge Farias, e pelas duas lindas filhas, é recusada pelo felino. O animal despe as latas, fustiga os sacos plásticos dispersos aos borbotões pelos inconsequentes moradores e zomba do lixo humano, ignorando-o. Na esquina, sobrevive, humilhada, a lixeira coletiva onde todos despejam seus excessos. Desperdício?

O bairro silencia. O som enxofre da morte parece rondar as casas, incriminando inocentes, falando futilidades e tornando o sopro da vida simples arquejar de pulmões doentios. Viver é preciso, mas o mar está de luto. Na porta principal, enseada das longínquas calmarias, Caronte a esperar o vintém a que se resumiu o valor de viver. Brevemente, será prolatada nova sentença de condenação. Se a vida fosse um oceano, morrer seria o degelo cravado no cume da desilusão ao cair na ponta do iceberg.

Ouve-se o barulho de latas jogadas ao chão. Nem de longe o perfume importado de Esmeralda, comprado a duras penas em dez parcelas sem juros, lembra o odor sombrio da noite enluarada. Pesada nuvem cúmulo-nimbo estende-se no firmamento – seria a núncia de maus tempos?

O azedume destrói toda saliva defenestrada sem pundonor. Bocas ávidas. Corpos cansados. É a fluidez na noite com seus medos, encantos, surpresas. O findar é perene interrogação. Continuar, demanda retoques inconclusos e traquejados com a maquiagem incrustada na face do tempo.

Cães ladram. Os ladrões, verdadeiros caninos, também estão a postos e farejam a próxima vítima. Todos estão famintos. Um homem de meia-idade, gordo, descansado, imberbe, lancha – está no único boteco ainda aberto nas imediações. Ambos recalcitrantes. Seu Tomas, herói expedicionário da Segunda Guerra, está atento. Ele serve um sanduíche ao freguês, mas o olhar, distante, pressente o cheiro dos lobos que rodeiam a aldeia.

Uma rasga-mortalha sobrevoa a Rua Delta num voo rasante. Solta o grito. Numa das casas por onde sobrevoa a ave noctívaga, a beata Ana Peregrina faz o sinal da cruz e se benze, murmurando frases curtas, jaculatórias. A moça velha tem arrepios por todo o corpo e volta a se persignar por mais três vezes, rapidamente, desterrando as premonições. O ex-pracinha da FEB fica amuado, olha para o freguês e pergunta se deseja algo mais.

– A conta, apenas a conta. – é a resposta.

Conta paga. Palito no dente, retirando os rebocos da alimentação, o homem gordo, enfadado após empanzinar-se, segue pela rua acompanhado por um gato faminto. Alguns cães tentam amedrontá-lo com latidas vigorosas, mas o homem segue alheio às súplicas do felino e aos cães. Joga o palito no chão e cospe, tentando acertar o gato impertinente. Na terceira rua entra à esquerda. Apressa o passo. Olha para os lados – ninguém. Prepara-se para urinar no muro da Escola de Dona Dolores, mas é interrompido:

– É um assalto!

Calmamente, o homem ergue os braços, sem exigência dos desconhecidos, pede para tirar a carteira e a entrega, de costas para os assaltantes. Os meliantes recebem o produto do desvirtuamento humano e saem, correndo. De repente, ouvem-se dois estampidos e um grito de espanto, dor, sofrimento. Há um corpo caído ao chão.

Os assaltantes somem. O homem imberbe guarda a arma e desaparece. Ao ouvir os disparos, Ana Peregrina pede pelas almas penadas, implorando o perdão de Deus. Seu Tomas, relembrando os tempos da guerra, das batalhas, das trincheiras, liame entre a vida e a morte, corre na direção dos disparos. Aproxima-se e encontra Pedro Delmiro, inconsolado, com o corpo esbelto de Esmeralda desfalecido nos braços.

– Mataram Esmeralda, Seu Tomas! Mataram minha princesinha, a flor mais cheirosa desse mundo!

Pelos gritos, portas se abrem, curiosas. Curiosos se achegam... E cessa a calmaria da noite.

Ao raiar do novo dia, os homens do bairro se perfilam pelas calçadas, no bar do Seu Chiquinho e demais pontos de venda, esperando o cortejo fúnebre da virgem Esmeralda que fora atingida pelas costas quando desafiava os pesadelos da noite entrelaçada aos braços do noviço amor.

Pedro Delmiro Fênix, inconsolado, desabafa:

– Linda menina, de lindas curvas. O calor da pólvora esfriou meu coração ao neutralizar o seu, mas se os cães farejam os aromas; se os gatos dissimulam o terror da noite; e os lobos aniquilam sonhos, tenho o poder de ressuscitar tudo o que amo. Com você parte minha sanidade. Sem você serei desejo: de amor, de ódio, de vida, de morte.

Todos se afastam sobressaltados. Pedro faz um gesto brusco e o calor da pólvora volta a tilintar no espaço...

Crato-CE, 7 de setembro de 2011.

02h17min

.:.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 06/06/2013
Código do texto: T4328938
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.