DERREDOR
                                            
Meu mundo está girando, hoje, assim como o carrossel, na tarde de domingo. Foi ali que começou minha decadência. E parte da culpa foi dele. E do vinho também. E da minha mãe. Se for contar, são muitos os culpados. O colorido do brinquedo, o girar constante, o vermelho da saia, que me agitava feito um touro bravio.

Tudo foi colaborando. Rita que me recusava o amor. Ela também entra no rol. Por que se casou, então? Era só queixa. Hoje não, Pedro, o dia foi tão cansativo. E mais: as crianças estão acordadas, podem ouvir. Ou então, eu me esforçando, querendo dar o melhor da mim, e ela com os olhos parados no teto. Eu pensando que estava no auge, pronta para explodir, quando ouço: talvez devêssemos pintar de azul. E eu me apagando, amolecendo, desencantando. Nem forças para reclamar.

O vento, as cores, o giro do carrossel, os gritos. Andressa. Não devia ter lembrando o nome agora. Por quanto tempo tentei esquecê-lo? Andressa de saia vermelha, de boca vermelha, de pernas de fora, de gargalhadas e gestos. Quantos anos? Doze, disseram os jornais. Mas não parecia. Juro. Era linda, corpo de moça e uma semelhança incrível com Rita. Na tarde de sol, segurei Andressa pela mão, alegando ser amigo da mãe, que a estava esperando no hospital. Os olhos castanhos expressaram tristeza.

- Minha mãe está doente? O que houve? Agora mesmo tinha ido comprar um sorvete pra mim.

As lágrimas deixando os olhos mais lindos, escorrendo pela boca, gotejando no decote. Entrou no táxi sem desconfiar. Os pais deviam orientar melhor os filhos. Pobre criança. Como tive coragem? 

Fui perfeito. Geraldo pagou por mim. Trabalhava num dos táxis da minha frota há anos. Era de confiança, bom empregado, quase da família. E nem remorso senti. Contratei advogado, fui visitá-lo na cadeia, conservei-lhe o emprego, ajudei a família. Agradecem-me por isto.

Até a condenação, vivi em conflito. Mas jamais me ocorreu a ideia de me entregar. O que me assustava, mesmo, era a possibilidade de alguém ter me visto com a garota. Mas não. Pedi a Geraldo que levasse Rita e as crianças ao parque. Eu não tinha condições. Havia bebido demais. Depois, resolvi ir também. Até hoje não encontrei explicação para isto. Coisa de bêbado. Tinha outra chave do veículo. O único erro foi não ter visto que a menina deixara a bolsinha dentro. Claro que também ajudou o fato de ter limpado o sangue na toalha. Também, se Geraldo tivesse ficado perto de Rita e das crianças, poderia ter um álibi. Tudo azar.

Fui ao velório. Ninguém estranhou minha presença. O local cheio, o choro e desespero da família e amigos. Alguém até chegou perto de mim e disse: não é de matar um miserável deste, cortar em pedacinhos e espalhar pelas ruas? E eu concordando. Se o homem soubesse meu destino. Estou apodrecendo vivo. Quer coisa pior? Seis meses, disse o médico. Seis meses.

- Seis meses de vida? Mas não há nada que se possa fazer? Cirurgia? Quimioterapia? Transplante? Nada? Eu pago. Não quero morrer, doutor. Tenho dinheiro. Sou um homem rico. Faço o que o senhor quiser. Não me deixe morrer.

Volto para casa com o envelope queimando-me os dedos. Vou para a janela. Preciso de ar. Seguro firme na esquadria para não cair. Sinto-me sem forças. Lá fora, no jardim, as rosas desabrocham. O perfume vem até aqui. Plantei a roseira com mãos de assassino. Mas ela não as reconheceu. E ainda me presenteia com beleza, lindas flores e aroma.

Tenho vontade de colocar o envelope e seu conteúdo no fogo. Como se resolvesse. E o olhar do Dr. Plácido? Poderia também queimar? E as palavras? Condenado. Estou condenado. E esta pena é pior do que a que consegui fugir. Vou morrer.

E se fosse contar? Não, não posso. Falta pouco para Geraldo sair do presídio. Agora, a Morte está se aproximando. Quero gritar que se vá, que me deixe. Mas Andressa tem vindo nos sonhos, ameaçadora. Ri, quando a Morte abre os braços.

- Olha! As duas ali. Não. Me larguem. Não.






 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 06/06/2013
Reeditado em 21/06/2013
Código do texto: T4328293
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