Ivo Viu a Uva. Em Angkor.

Quando Ivo viu a uva em sua plenitude de fruta ou de metáfora ( como irei saber?), o silêncio desabou sobre mim.

Tudo visto e escrito sob a fôrma correta. E os pontos finais sempre me anunciam uma nova jornada a ser percorrida. A quem mais?

Com a ingestão de apenas uma uva estragada, Ivo foi parar no SUS com diarréia, forte dor abdominal e delírios de perseguição. Sua história mediana, de cidadão normal e doente com sintomas de razoável diagnóstico não interessa a ninguém nestes tempos desumanos. A não ser a malucos por leituras trash em dias de domingo com chuva.

Sendo assim, talvez possa captar sinais e nuances de instantes efêmeros, barulhos de silêncios normóticos e, quiçá, continuar a escrever sua história.

(Autores farsantes necessitam de desculpas e de convencimento de uma meia dúzia de um ou dois leitores lunáticos.)

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Ivo foi atendido na emergência por conta de seu estado de extrema fraqueza e da presença de uma vaga. Não fôra uma uva, com certeza.

Desfalecendo, o soro enfiado em uma de suas veias lhe injetou uma dose de rubor em sua alma que continuou em seu caminho, já muito antes iniciado, de percorrer as florestas do Camboja até sua terra natal, Angkor Vat.

Nascido nesta região no ano de 946, metrópole que estava em seu apogeu, com riquezas deslumbrantes e governantes que concentravam todo o poder, Ivo era um aprendiz de sacerdote que se ocupava com a plantação de arroz de sua comunidade. O excedente era vendido a preço reduzido.

Os sacerdotes que o rodeavam, poucos, é bem verdade, posto que sua posição social não demandava mais atenção de ninguém, a não de ser daqueles que abraçavam seu ofício com o verdadeiro afeto caridoso para com o outro, não compreendiam a origem de seu mal. Alguns rituais foram realizados, mas Ivo continuava desfalecido apesar dos banhos específicos. O quadro se configurava muito nebuloso pois estava inconsciente para relatar se fôra uma visão ou uma ingestão.

Encontrado caído no arrozal, com uma cesta de sementes violáceas suas pupilas estavam dilatadas e restos de tremor percorriam sua fronte.

A visão ou a ingestão de uma imagem pode ter seus malefícios ou benefícios, à sombra. A cura depende de uma anamnese profunda, quase histórica, para além do individualismo atual. Ivo é reminiscência de tantas memórias assim como o do seu vizinho, um proto-normopata.

Uma uva roxa, de sabor agradável, é resultado de uma virtualidade, semente da vida. Os sacerdotes diante do mistério da origem retomam suas inquietações e desentendem-se quanto ao tratamento. Ivo era trabalhador forte, importante para a comunidade.

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Com a desconfortável percepção da desatenção da equipe médica, ele sofria quieto. Estava abandonado no chão do corredor de um hospital público, com o soro a despencar suas últimas gotículas. Preso em seu corpo flagelado pela fraqueza, Angkor ficava cada vez mais distante. Vira a uva e o largaram ali, na esperança que cedesse seu lugar o mais breve possível. O SUS e seus sacerdotes com burnout de tanto trabalhar.

Dar lugar a quem? Qual seria o próximo com um ponto final instaurado pelo nonsense da vida cotidiana? Em Angkor, era importante à sua comunidade, o final de qualquer evento era quase um ritual de iniciação à uma abertura elíptica. Aqui, Ivo se perdeu em sua incompletude mal compreendida.

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Knervi havia chegado à porta do santuário quando o servidor público barrou-lhe a entrada: " não há espaço para acompanhantes, dona."

A esposa de Ivo estava apreensiva quando ao estado de saúde daquele homem que ainda amava. Mas, o absurdo sondava suas vidas desde tempos imemoriais. Haveria tido um início, origem com miragem de significações, para algum vivente?

Fazia tempos que os humanos sobreviviam em grupos.

Nao se sabe se Ivo não despertou de seu desfalecimento ancestral. Quem saberá? Ondas de imponderabilidade chacoalhavam Judith. Ela pressentia, de alguma forma. "Alucinações andam por aí, à espera de alguma porta de entrada, pensou. Meu marido deu uma pirada"

A van estava lotada, aquela hora da manhã.

E as uvas, fora de época.

Setembro 2008