Ilusão real
O vento balança vorazmente as árvores e o sol desaparece do céu atrás de negras nuvens. A tempestade estrondosa sacode tudo com ferocidade como que embutida em incessante fome destrutiva. Perscruto um abrigo. As portas escancaradas me deixam entrar em alguma casa. Um barulho ensurdecedor advém de todos os lados e meu coração acelera bruscamente. Os móveis velhos, empoeirados, denotam a inexistência de pessoas no esconderijo. Percebo que estou completamente só e logo quero sair em busca de companhia pra acalmar o medo que sobrevoa. É quando corro em desespero na rua semi-escura, banhada pela chuva em correntezas violentas e desertas. Existe apenas um mundo que chora na enxurrada da natureza impiedosa. Atiço meus pensamentos para a realidade e percebo que o fim chegou; algum fim que tenta me mostrar que não há escapatória. Envolto em meu aniquilamento caio no chão e a água suja molha meu corpo que não mais consegue se arrastar; apenas geme e se vê dentro duma vala que se fecha aos poucos, e minhas pernas não me obedecem, meus olhos ardem, minha mente fervilha e um estrondo estilhaça o céu e a luz vibrante clareia a terra na devassidão. Solto um grito de horror, imploro socorro, mas ninguém vem. Não há sinais de outros seres vivos e, não sei o que fazer, para onde ir, pois nem mesmo posso andar. É quando esquivo para trás e percebo um cachorro preto a me olhar; ele me encara com severidade, não late e seus olhos parecem conter alguma cínica expressão durante os minutos que ficamos nos encarando, e me esforço para entender a sua fala silenciosa e ele parece mostrar os dentes perante minha precariedade racional, talvez para me despertar, acordar ou me fazer entender algo oculto. Ele late alto e se sacode todo e eu fico enraivado com minha incapacidade de compreendê-lo, e ele parece pouco se importar com a destruição da terra neste temporal.
Em meu desespero, eu imploro:
- O que pretende me dizer? Por que sorri de mim desse jeito?
O cão sacode a cabeça como que consciente de minha incompreensão à sua linguagem e decidido a não mais perder tempo com um simples mortal, desaparece na escuridão que inunda a terra. E o meu próprio ser não mais se reconhece como um homem, pois agora se habita na pele de um cachorro negro que vaga solitariamente na escuridão noturna correndo no temporal, que parece não ter mais medo de nada e nem mesmo querer entender, apenas aproveitar a água da chuva que segue caindo na cidade deserta na madrugada violenta. E um carro veloz desponta em meio ao temporal e atinge o cachorro desprevenido, que estirado no chão dá seus últimos gemidos, e saio do volante do carro pra ver o estrago do que fiz e os olhos arregalados do cão me encaram e me culpam e me perdoam e me deixam confuso e ponho minhas mãos na cabeça, preocupado por ter tirado a vida deste animal e ele estirado parece tão calmo e eu choro no silêncio da noite embaixo da forte chuva e meus pensamentos me acusam de ser um assassino e me esforço para dizer que não sou assassino, apenas sou assim mesmo, inesperado, igual a todo ser humano. Então esqueço o cachorro morto e lembro de um outro cachorro que eu tinha quando criança e logo vejo o quão distante estou daquela criança que era boa, fico supondo que eu era bom, mas não sei mais onde foi parar minha bondade e a bondade de todas as ex-crianças e logo esqueço às crianças boas e firmo meu olhar nos adultos maus e vejo uma miríade de adultos sem escrúpulos fazendo e dizendo inverdades e eu não conheço a verdade e por isso minto com a cara limpa e beijo o rosto do meu filho jurando torná-lo um homem do bem como se eu dominasse a bondade em todos os lugares e ela morasse dentro de mim, e logo lembro que tive que trapacear para me sair bem numa faceta qualquer e tento justificar o meu erro internalizando em mim que foi necessário agir de tal modo, e que eu não menti, apenas distorci os fatos, e penso que as distorções estão em todas as pessoas e que ninguém está imune ao vírus...
E, no suspiro seguinte preciso abandonar os questionamentos, afinal não conseguirei me afastar de mim, haja vista que sou idêntico ao outro e minhas diferenças são puramente minhas relações pessoais que também as desconheço em suas reais matizes. Sou forçado a delinear meus olhos pra minha família e perceber que é maravilhosa mesmo estando mergulhada em seus pequenos conflitos, e esse é o sentido; é a única afirmação da vida. Por isso não devo condenar-me, melhor deixar que os outros façam isso...
Fecho as janelas que abri as quais me possibilitaram alguma dispersão noutros campos e que até me deram algum prazer dolorido em escavar tais questionamentos, mas é preciso sair da nebulosidade chuvosa; abandonar a pele do cachorro negro; aceitar a realidade dos acontecimentos; levantar do divã e encarar os monstros reais fazendo de conta que eles são meros entretenimentos. Então me despeço do especialista, abro a porta do consultório e encaro a ilusão real...
Em meu desespero, eu imploro:
- O que pretende me dizer? Por que sorri de mim desse jeito?
O cão sacode a cabeça como que consciente de minha incompreensão à sua linguagem e decidido a não mais perder tempo com um simples mortal, desaparece na escuridão que inunda a terra. E o meu próprio ser não mais se reconhece como um homem, pois agora se habita na pele de um cachorro negro que vaga solitariamente na escuridão noturna correndo no temporal, que parece não ter mais medo de nada e nem mesmo querer entender, apenas aproveitar a água da chuva que segue caindo na cidade deserta na madrugada violenta. E um carro veloz desponta em meio ao temporal e atinge o cachorro desprevenido, que estirado no chão dá seus últimos gemidos, e saio do volante do carro pra ver o estrago do que fiz e os olhos arregalados do cão me encaram e me culpam e me perdoam e me deixam confuso e ponho minhas mãos na cabeça, preocupado por ter tirado a vida deste animal e ele estirado parece tão calmo e eu choro no silêncio da noite embaixo da forte chuva e meus pensamentos me acusam de ser um assassino e me esforço para dizer que não sou assassino, apenas sou assim mesmo, inesperado, igual a todo ser humano. Então esqueço o cachorro morto e lembro de um outro cachorro que eu tinha quando criança e logo vejo o quão distante estou daquela criança que era boa, fico supondo que eu era bom, mas não sei mais onde foi parar minha bondade e a bondade de todas as ex-crianças e logo esqueço às crianças boas e firmo meu olhar nos adultos maus e vejo uma miríade de adultos sem escrúpulos fazendo e dizendo inverdades e eu não conheço a verdade e por isso minto com a cara limpa e beijo o rosto do meu filho jurando torná-lo um homem do bem como se eu dominasse a bondade em todos os lugares e ela morasse dentro de mim, e logo lembro que tive que trapacear para me sair bem numa faceta qualquer e tento justificar o meu erro internalizando em mim que foi necessário agir de tal modo, e que eu não menti, apenas distorci os fatos, e penso que as distorções estão em todas as pessoas e que ninguém está imune ao vírus...
E, no suspiro seguinte preciso abandonar os questionamentos, afinal não conseguirei me afastar de mim, haja vista que sou idêntico ao outro e minhas diferenças são puramente minhas relações pessoais que também as desconheço em suas reais matizes. Sou forçado a delinear meus olhos pra minha família e perceber que é maravilhosa mesmo estando mergulhada em seus pequenos conflitos, e esse é o sentido; é a única afirmação da vida. Por isso não devo condenar-me, melhor deixar que os outros façam isso...
Fecho as janelas que abri as quais me possibilitaram alguma dispersão noutros campos e que até me deram algum prazer dolorido em escavar tais questionamentos, mas é preciso sair da nebulosidade chuvosa; abandonar a pele do cachorro negro; aceitar a realidade dos acontecimentos; levantar do divã e encarar os monstros reais fazendo de conta que eles são meros entretenimentos. Então me despeço do especialista, abro a porta do consultório e encaro a ilusão real...