O fim de Clarisse (Reescrito)
Tarde da noite, em uma noite fria e assombrosa, Clarisse perambulava pelas ruas. Ruas escuras, sem nenhum tipo de iluminação; se houvesse, era somente a luz da lua, e mesmo assim extremamente ínfima, como a luz que invade um cômodo pelo orifício da fechadura da porta. Embora estivesse tão escuro, aquela menina não se importava, simplesmente permanecia. Desejava uma desastrosa instância; desejava que sua vida fosse levada, que sua alma fosse embora descansar... Apenas desejava.
Ao longe Clarisse pôde notar uma luz, rapidamente transformando-se em duas. Deduziu ser um carro, mas logo percebeu que se tratava de um caminhão. Com a pouca luz em sua direção ela conseguiu ver suas mãos, estavam manchadas de sangue, também notou algumas manchas roxas sobre o braço; o que causou um grande desconforto na menina, fazendo uma lágrima, uma desprezível lágrima, cair de seu rosto.
O seu plano era simples e indolor: quando o caminhão estivesse muito perto, perto o suficiente para não desviar, Clarisse se jogaria na frente daquele imenso automóvel e tudo, tudo estaria acabado. Pronto; sem mais dores, sem mais decepções.
Clarisse estava mais calma do que imaginava, seu coração, ela mal sentia bater, ou não sentia talvez. Estava decidida, tudo aquilo precisava acabar. Quando o caminhão pôs-se o mais próximo possível, segundo antes de alcança-la, ela correu para o meio da estrada, fechou os olhos e gritou. Gritou tão forte quanto podia, tanto, que seu berro agudo ecoava pelas estradas escuras e vazias daquela vastidão oca. Esperou pela buzina, mas não a ouviu; esperou pela diminuição de velocidade, que não ocorreu. Não podia mais desistir, não havia tempo. Pronto, o caminhão alcançou-a.
"O que aconteceu? Eu devia estar morta!" berrava Clarisse. Tudo o que ouvia era o eco de si mesma. Olhou para trás e viu que o caminhão passara, embora nada tivesse acontecido a ela. Aos poucos sua memória foi retornando... O sangue em seu corpo, os hematomas, a roupa rasgada. Quantas vezes ela tentara se matar? Quantas noites Clarisse aparecera nessa estrada pedindo ajuda? Recordou-se de tal fatídico momento. Chorou, chorou como uma criança –afinal era tudo o que ela era: uma inofensiva garota- chorava, chorava e gritava ao mesmo tempo. Berrava tanto que sua garganta arranhava e suas veias pareciam estar prestes a explodir.
O padrasto de Clarisse abusara dela. Em um momento de loucura, fazer saliências com uma garotinha não fora suficiente, sem mais, ele a matou. Aproveitou que a mãe de Clarisse estava em uma viagem de trabalho, foi em busca de uma rodovia distante qualquer, distante, bem distante. Avistou uma imensa vala paralela à estrada que somente abrigava mato, um mato muito alto; decidiu que lá seria o fim de Clarisse. Jogou o corpo da pobre menina no mato, sem nenhum remorso. Voltou para casa como se nada tivesse acontecido. Esperava o retorno da mãe para que pudesse dar a notícia do sumiço da garota.
Hoje, seis meses após seu corpo ter sido jogado em uma vala qualquer, sua mãe vive ao lado do assassino de sua filha. Ingênua, nunca desconfiou quando Clarisse mantinha-se calada ou triste pelos cantos da casa. Sofre a perda de sua única filha e refugia-se nos braços de um imundo desalmado.
Tudo que Clarisse busca é a paz de seu espírito; deseja que alguém encontre seu corpo, mais do que tudo: deseja que sua mãe um dia descubra o quão monstro aquele homem é, deseja que ela possa levar uma vida de verdade, e não uma mentira ao lado de um sanguinário.
Clarisse vaga buscando sua paz, a sua ida para um lugar melhor. Seu rancor a mantem aqui, sua dor implora para deixá-la ir, mas não consegue... Vive perambulando pela avenida tentando ser vista; tentando morrer novamente, ( re)assistindo e (re)sentindo a sua dura realidade; e, mais que tudo, buscando a sua liberdade... Clarisse só tinha quatorze anos, assim como muitas outras pobres crianças...