DO ALTO

          O Engenheiro Pedro entra no elevador panorâmico e não encontra ninguém. Ainda é cedo. Escolheu esse horário de propósito. Quer dar uma última olhada no prédio, antes de dizê-lo acabado, pronto. Orgulha-se da obra espetacular, a primeira do gênero na cidade, no Estado, quiçá do País. Enquanto sobe, vai admirando o Guaíba, o Parque da Harmonia, a Usina do Gasômetro. Ao chegar no 40º andar, tem uma vista global da cidade. Ergue os braços aos céus e cai de joelhos, deixando as lágrimas fluírem, sem pejo, numa necessidade de banhar o rosto, lavar a alma, romper o dique, primeiro manchar o chão de lágrimas e deixar o mundo girar, girar, em voltas ao passado.

          É manhã de inverno, quando o minuano sopra atingindo-o como se estilhaços de vidro penetrassem-lhe na pele, ferindo ainda mais o minguado corpo. Seus dez anos não lhe permitem ter a clareza do que está acontecendo. Aconchegado entre trouxas e balaios, pai, mãe e filho protegem-se. Pedro chora baixinho, sem entender por que os pais insistem em tirá-lo da terra, impedi-lo de correr pelos campos com Pitu em seu encalço. Procura em volta, os olhos assustados, o coração aos pulos. Tem um riso triste. Pitu está ali, abrigando-se, enroscado entre as trouxas. Precisou de muita birra e choro para que os pais consentissem em trazê-lo. Era uma boca a mais para passar fome. De Mariquita, a galinha carijó, e de Zito, o cavalo preto, tivera de desistir. Havia a promessa dos irmãos adultos de que cuidariam bem deles.

          O ônibus correndo, deixando para trás as coisas que amava, partindo rumo ao desconhecido, ao incerto, fazia com que lágrimas brotassem, escondido do pai, porque homem não chora. O atordoamento com pessoas entrando e saindo do veículo, com cumprimentos para a comadre, lembranças para o seu João, galinhas amarradas pelas pernas, porcos gritando, cães latindo, trouxas de roupas, caixas com laranjas, chega pra lá, para que o menino quer ir no mato, vômitos, Pitu lambendo, tosses, mau cheiro, palavras, gritos, até o ponto final. A maloca de chão batido, encostada no edifício de luxo, o pai vendendo balaio, a mãe limpando as casas, ele engraxando sapatos, correndo dos meninos que queriam agredi-lo, a fome corroendo as entranhas, a vergonha, a vontade de voltar ao campo, a dor no rosto da mãe, o arrependimento do pai, a saudade dos irmãos, aprisionando, marcando os dias de menino angustiado, como os tiques e os taques do relógio que não tinha.

          Com Piccadilly brilhando, a bolsa Vítor Hugo da mesma cor, cabelos tratados com Seda, cosméticos embelezando-lhe a face, perfume Channel, a mulher desceu do Volkswagen do ano, sorriu e estendeu-lhe uma moeda. Momento mágico de transição entre a miséria e a opulência. Nunca mais sentiu fome, medo, frio, miséria, nem amor. Saudade, sim. Desapego, sim. Ingratidão, sim. Pitu, pai e mãe foram abandonados, diluídos aos poucos pelo furacão que lhe varreu a vida, para deixar as misérias enterradas. Entre o ficar e o partir, optou pelo segundo, sem volta, sem remorso. Decisão de menino para a grandeza do adulto que nele carregava, rompendo liames. Não mais olhou para trás. Endureceu o coração. Foi homem, mulher, joguete, amante, marido, pai, profissional habilitado, rico, de coração fechado, empurrando dores, pisando nos entraves, derrubando quem ousasse barrar-lhe o caminho, sempre alerta para não lhe desmoronar o castelo.

          O Engenheiro Pedro ergue-se do chão, seca as lágrimas, desliza a mão para retirar a poeira do terno, ajeita a gravata e sobe na amurada, ainda sem grades. O vento forte machuca-lhe o rosto, como o minuano ferindo o menino do passado. Lembra das cartas que deixou para a mulher, para os filhos, para os sócios, sorri, antes de abrir os braços.



 



MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 07/05/2013
Reeditado em 18/05/2013
Código do texto: T4279231
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.