Maçã do amor
 

Foi tudo muito rápido.

A menina vendia maçãs do amor repetindo a ladainha que a mãe a obrigara a decorar

“A maçã custa 1 real, o amor é de coração”

só viu a mão com dedos delgados, brancos e compridos e unhas pintadas de carmesim, no caixote, pegando a fruta caramelada e atirando na cabeça do moço loiro.

A mulher, que usou o doce como arma, era ruiva e usava cabelos curtos acaju-cereja e tinha grandes olhos azuis. Ela berrava “Toma isso filho da puta e enfia no c...” A garotinha não entendeu nada, mas apenas repetiu a frase, agora, claramente, se dirigindo a mulher com cabelos acaju-cereja que apontava a segunda maçã para o moço loiro, que se protegia com as mãos.

“A maçã custa 1 real, o amor é de coração”

mas a mulher continuava esgoelando todos os nomes feios e, para o desespero da criança, pegava as outras maçãs e ia atirando no moço loiro como se ele fosse aqueles alvos da barraquinha do parque das espingardas com bolas de tênis. O sonho da menina era atirar no número 23 e ganhar a boneca, porém ela, como, digamos, funcionária, não poderia usar o tempo para diversão: sua mãe aguardava o lucro para comprar comida e créditos para conversar com Wallacy no celular.

“Dona, a maçã custa 1 real, o amor é de coração”

falou novamente a pequena ambulante porém não conseguindo a atenção da linda mulher de batom magic blood. “Dona, dona...” a menininha agora puxava ansiosamente a saia da mulher que, sem mais projéteis açucarados para atirar no moço loiro, apenas apontava o dedo “Seu sem vergonha, mentiroso, eu te odeio, eu te odeio...”. A menina já estava em pânico, pensando na surra que levaria quando chegasse em casa sem maçãs e sem dinheiro. Ofegante, a vendedora mirim, que agora só tinha o caixote vazio dependurado nos ombros ossudos,  clamou, superando a voz da mulher e a música do parque“A SENHORA É A COBRA DO PARAÍSO???” 

“Daria uma foto”, disse o homem que tirava retratos das crianças assentadas num pônei postiço. Daria uma foto o silêncio que a pergunta da menina mobilizou em quase todos que assistiam à briga, como se fosse mais uma atração do Parque de Diversão Viva la vida; e não seria exagero dizer que até o trem fantasma se assombrou com a cena que, naquele momento, tinha como personagens a mulher e a menina. “Uma cobra? É disso que você me chamou, sua vadiazinha? Por acaso você sabia que essa merdinha dura que você está vendendo aí faz mal aos dentes?” disse a mulher apontando para dentro da caixa vazia, depois para as fileiras de porcelana branquíssimas na boca e por fim para a carinha assustada da menina. A garotinha observava a ponta do dedo da mulher que balançava como a cabeça de uma pequena cobra, ameaçando-a. Lembrou novamente da possibilidade de levar uns bons tapas da mãe e, pior, ficar sem o arroz com ovo amanhã ou depois, visto que não tinha ganhado dinheiro suficiente. 

Então a menina abriu a boca, não para responder a mulher ou cobrar o valor das frutas arremessadas, mas para morder aquele comprido dedo viperino que acabara com todas as maçãs do amor. E foi uma dentada só. Forte. Cravada. Os poderosos caninos, na realidade cacos careados de faminta, fenderam a unha da mulher loira bonita como a um vitral escarlate apedrejado.

Na delegacia, o homem se sentia aliviado de não ter que dar mais satisfações à mulher furiosa, mas sim apoiá-la na sua causa contra aquela filhote de canibal. Além dele, estavam o fotógrafo, não do parque mas do Jornal, que fora avisado pelo fotógrafo do parque sobre o furo jornalístico. Com um celular, o empregado do “A Hora é Agora”, perguntava questões legais sobre, por exemplo, o fato de apresentar no periódico a foto de uma menor. “Menor uma porra! Para decepar o dedo da Srta. Alavarenga não é não né?” disse o chefe da redação que aliás sugeriu aliar o fato à questão da discussão da idade penal que estava em voga. No dia seguinte a manchete seria MENINA ARRANCA DEDO DE ADVOGADA; a foto da garotinha com o rosto ofuscado por PHOTOSHOP. 

O homem deu um anel de ouro para disfarçar a deformidade no dedo  da mulher e foram tomar um chope no mirante. A mãe da menina deu-lhe uma surra e foi prestar depoimento na delegacia. A menina deu de ombros e foi fazer mais maçãs do amor para vender no parque, no dia seguinte.

Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 27/04/2013
Código do texto: T4262400
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