BRINCADEIRA MACABRA
Por: josafá Bonfim
Moravam pai e filho numa casa modesta no alto de uma barranca do majestoso rio que banhava a pequena cidade. Viviam só os dois pois morrera a mãe antes de completar um ano do nascimento do filho. Por serem os únicos membros da família, um nutria pelo outro forte apego, consequência da reciprocidade afetiva. Eram apegados a ponto de estarem sempre juntos nas mais diversas ocasiões; isso desde sempre, já que na ausência da mãe, o pai fizera duplo papel na formação do filho. Originários de uma família de pescadores herdaram desta a profissão. Era muito difícil ver um sem que o outro não fosse visto por perto. O único momento em que se separavam era quando o adolescente estava na escola. Um dizia que se perdesse o outro por motivo de morte a vida não mais lhe faria sentido e que a partir de então preferiria morrer também. Quem ouvia aquela jura repreendia-os, por achar que cabia somente ao Criador, estabelecer tais princípios.
O tempo corria preguiçoso no pequeno lugarejo, onde a rotina e o marasmo faziam parte da existência cotidiana.
Um dia, Joaquim (o pai), foi com um amigo a uma pescaria num imenso lago distante, cuja ausencia levaria três dias de duração, fato costumeiro no meio em que viviam.
Retornando do ensino publico com os colegas de aula, Juca é convidado por um deles para uma breve parada em sua casa, a fim de mostrar-lhe a novidade, que passara a aula inteira anunciando, sem contudo, revelar o que era, gerando intensa curiosidade. Outro colega, também convidado, serviu-lhes de companhia.
Na casa estavam apenas os três adolescentes, pois a família de Rildo, que os convidara, encontrava-se em compromisso na cidade vizinha.
Sentados a mesa, Juca e Heleno observam o colega trazendo na mão uma sacola apanhada entre seus pertenes.
Curiosas as visitas aguardavam passivamente a tal surpresa, enquanto Rildo se manifesta:
- Voces já viram falar no “jogo do copo”, pergunta o anfitrião, começando a tirar de dentro da sacola os apetrechos. Por alguns minutos explica aos colegas, o que aprendera de um praticante das ciências ocultas; como funcionava o ritual da Necromancia, onde coloca-se sobre uma mesa um copo vazio emborcado, envolta deste um circulo com as letras do alfabeto, e números de zero a nove, para que o copo por se só possa se dirigir às letras, formando palavras em resposta as perguntas feitas pelos jogadores. Asseverando que aquilo seria uma prova inconteste da existência de espíritos, e a clara demonstração de que estes podiam se comunicar com pessoas vivas.
Enquanto expõe a formalidade, vai montando o cenário para o ritual. Os colegas ouvem passivos observando as explicações com imensa curiosidade.
***
O ensinamento formal diz que a prática existe, e costuma exercer fascínio sobre os jovens. Quem a pratica tem que ter preparação, pois segundo os entendidos na ciencia, os brincantes correm sério risco de submeterem-se a possessões demoníacas, com danos físicos e psicológicos permanentes, devendo as cerimônias serem administradas por pessoas experientes e bem preparadas, o que não ocorria na ocasião.
Com o dedo tocando levemente o fundo do copo emborcado, o objeto ia se deslocando a procura das letras formando palavras, em resposta as perguntas feitas, enquanto curiosos, de modo inadvertido os incautos mergulham de vez no ritual.
Deviam estar na terceira rodada de perguntas e respostas, feitas aleatoriamente.
Chegada sua vez, Juca posiciona-se e com o dedo indicador tocando no copo, pergunta sobre seu pai, que se encontrava pescando num lago contiguo ao rio. O copo sinistramente faz um rodopio começando lentamente a formar uma frase de conotação trágica. Juca, estupefato, repete a pergunta de forma mais clara: - Como está o meu pai nesse momento? – Seu pai acabou de morrer afogado no rio, é o que obtém como resposta pela segunda vez. Impactado com o que viu, o menino entra em desespero deixando os dois colegas apreensivos, tentando acalmá-lo. Uma forte perturbação, seguida de crise de choro se desencadeiam no rapaz. Os dois companheiros aflitos tentam conformá-lo, alegando que aquilo podia não ser verdade. Inutil..., o garoto desprende-se do costado dos amigos e sai em disparada gritando de forma incontrolável pelo nome do pai, correndo alucinadamente no sentido do rio. Alcança a ponte sem que alguém pudesse contê-lo, e no alto desta, atira-se no precipício atingindo as profundezas das águas, onde some por completo, não retornando a superfície, deixando a todos em polvorosa. Em questão de minutos, toda a localidade torna-se consternada com o sinistro acontecimento.
***
Como não existia embarcação a motor na época na pequena povoação, careceu de várias horas até que alguém numa pequena canoa alcançasse seu Joaquim num porto distante no rio e a ele transmitisse o trágico acontecimento, que vitimou seu único e adorável filho.
No impacto da alta queda - pois o rio encontrava-se com baixo nível de água - o corpo foi projetado num poção de profundidade imensa, e como se desacordado é apanhado por uma corrente fria que deságua num ribeirão e vai levando-o como num sonho, ao encontro de um braço mágico que o acolhe e suavemente abre caminhos num estreito canal entre rochas e vegetação, num labirinto submerso. Inebriado pelo perfume exalado dos longos cabelos de uma ninfa que o guiava naquela passagem de encantos, vai deixando levar-se. Quando deu conta de si, estava numa imensa caverna encharcada de água. Com bastante frio, arrastou-se pelo lajeiro recostando-se na base de um paredão, onde a frieza era amena. Exausto, perdeu a consciencia, sem saber ter desmaiado ou agarrado no sono. Despertou, quando sentiu o calor de um filete de luz solar tocar-lhe a face. Correu a vista ao redor e o que pode vislumbrar foi um lugar paradisíaco e agradável como dantes nunca visto. -Se existisse paraíso, aquele certamente seria um. Com regatos, cachoeiras, muitas plantas e flores de diversos matizes, seria o reino encantado das águas?. Mas não pressentiu a existência de qualquer ser vivo, com exceção de borboletas, que eram bastante e multicoloridas. Que lugar magnífico seria aquele a transmitir tamanha paz espiritual?... Passaram-se as horas naquele estado de graça, até que de chofre ouviu um coro de vozes vindo de longe, que lhe parecia aproximar-se a cada instante.
Permaneceu quieto no lugar em que se encontrava, enquanto ouvia passadas de alguém se aproximando.
Acostumado desde criança com os espíritos e enigmas da noite, nas aventuras em pescarias noturnas com o pai, que lhe contava estórias escabrosas e lhe orientava a conviver com as divindades e criaturas das águas, teve capacidade para controlar os impulsos e o medo.
As vozes se aproximaram a tal ponto, que pareciam os emitentes estarem sob o alcance de suas mãos. Mas por incrível que parecesse, não conseguia ver ninguém, embora tenha reconhecido uma a uma todas as vozes. Não era possível..., imaginou só poder estar delirando. Não podia ser verdade..., aquelas vozes pertenceram a pessoas bastante conhecidas suas, que há muito tempo não fazia mais parte da vida terrena. Teriam morrido de forma trágica, em épocas distintas, afogadas nas águas daquele rio.
Instigado pelas criaturas invisíveis, entendeu com certa dificuldade estas dizerem que o mesmo encontrava-se em porção sobrenatural, pois aquele lugar pertencia aos espíritos encantados das águas, e eles ali estavam a cumprir aquela etapa por terem desencarnado nas correntezas e que assim que fosse cumprido o tempo que lhes faltavam, iriam para o reino prometido, onde viveriam a eternidade.
A comunicação era difícil, os seres do além falavam uma linguagem própria, para descrever suas penitencias a partir daquela missão. E parecia não lembrarem mais dos sinais e símbolos da língua praticada em vida. O transplantado quis saber como veio parar ali e se por acaso seu pai se encontrava naquela dimensão pois sabia tê-lo perdido em afogamento nas águas, a exemplo dos demais ali existentes. Responderam-lhe que por ter brincado com coisa séria foi alvo de obsessão espiritual e em transe veio a ser conduzido até aquela tumba e por obra de uma mãe dágua que atravessou o seu caminho foi resgatado da morte, no momento de sua desencarnação. Disseram-lhe, ainda, não ser a revelação no jogo do copo, obra de espíritos nobres, pois estes, não se envolvem com futilidades, tendo aquilo, sido arte de um espírito maligno, que prima pela tragédia e desagregação; do que não tinham permissão para tratar. Alegaram que o esforço em manter aquele contato mediúnico tornara-se por demais exaustivo, precisavam descansar, e assim se retiraram deixando-o em repouso, que instantes após, viu-se mais uma vez em sono profundo, ou mesmo desmaio.
***
Corria o terceiro dia de busca incessante para encontrar os corpos tanto de Juca, quanto de seu pai Joaquim, sem qualquer resultado satisfatório. Ocorreu que após ser avisado da morte do filho nas águas do rio; ao chegar em cima da ponte, no lugar do seu desaparecimento, Joaquim também se atirou no precipício atentando contra a própria vida, por não se conformar com a perda repentina do filho. Preferindo juntar-se a este, conforme juramento, e dessa forma duas tragédias se consumiam.
***
A dupla de pescadores, cansada de tanto mergulho envão, deixa a canoa seguir a esmo a corrente dágua, enquanto lamentam o fatídico; quando um deles observa num trecho deserto da margem, alguém estendido, imóvel sobre a relva, numa descampada prainha. Aproximaram e ao constatar, não acreditaram no que viam. Moveram o corpo inerte de Juca enquanto este preguiçosamente acordava, como se estivesse reabilitando de um entorpecimento. Um rasgo de felicidade contagiou a todos que surpresos mal conseguiam agradecer a dádiva e felicitar o milagre alcançado.
Seguiram viagem rio acima para retornar ao convívio de todos, felizes pelo resgate do rapaz, sem contudo, tratar sobre o desaparecimento de Joaquim, que para o filho, estaria morto desde a revelação obtida no malogrado ritual do jogo do copo. Enquanto vagarosamente singravam as águas correntes, o menor em silencio chorava lamentando a perda do pai.
Assim..., todos os dias ao entardecer, no delírio de sua orfandade, via-se um garoto solitário sentado na barranca alta, da cabeceira da ponte. Seu olhar pesaroso, perdia-se na imensidão das águas, como se aguardando, como de costume, o retorno da pessoa estimada na humilde canoinha, repleta de peixes que lhe dava o sustento na pobre cabana. Ou quem sabe, acalentando o desejo de atirar-se outra vez nas águas, para retornar àquele lugar paradisíaco onde talvez seu pai já pudesse estar aguardando-o em outra dimensão.
São Luis/MA, 01 de abril de 2013