A INTERVENÇÃO

Daniel Mercante admirava o sol, um imenso círculo alaranjado na linha do horizonte que lançava seus últimos raios em batalha contra a noite. Observou as três velas infladas da nau, concluindo que estava bem servido de vento, o que possibilitava à caravela um deslocamento contínuo e sereno. O mar, por sua vez, colaborava sossegado.

Daniel acreditava que teriam uma noite sem sobressaltos, com direito a um bom sono.

– Senhor Mercante.

Daniel se virou e viu o jovem tenente Coimbra.

– Pois não.

– O capitão pergunta se o senhor gostaria de jantar com ele.

– Tenente, agradeça ao capitão, mas vou cear em minha cabine e descansar, ou melhor, tentar dormir cedo. Com certeza, ao amanhecer, chegaremos ao porto de Marselha. Sei que terei um dia muito corrido com minha audiência com o Rei. Você sabe tenente, como é cansativo um dia na corte.

– Nem precisa dizer, Senhor. Tenha um bom descanso.

– Obrigado, tenente.

Daniel observava Coimbra enquanto este se afastava. Era um jovem de 23 anos formado pela Real Academia, preparado para a guerra, e que, com muita sorte, poderia atingir os trinta.

Ao dirigir-se à sua cabine, parou ao lado de um dos canhões que pertencia a uma fileira de doze, onde leu na culatra: Fabricado em 1690. Passou a mão sobre a peça e percebeu que ela tinha pequenas deformações devido a seus dez anos de uso. Talvez durasse mais cinco, caso a nau não viesse a pique em conflitos futuros.

Daniel entrou na cabine, desembainhou sua espada e pendurou-a num suporte. Retirou a pistola que escondia sob o casaco e examinou-a demoradamente. Era uma Mauser automática. Balançou a cabeça com desdém e a depositou sobre uma pequena mesa ao lado da cama. Pela vigia, podia vislumbrar parte da lateral da nau com seus canhões e um marinheiro de sentinela na proa, armado com espada. Sentou-se na cama e, olhando para a arma automática sobre a mesa, desabafou:

– Isso é muito para minha cabeça, narrador. Posso fazer um comentário?

???

Daniel repetiu:

– Narrador, posso fazer um comentário?

Pode.

– Pelo que vi até agora, presumo que vim do futuro, ou seja, sou um viajante do tempo. O ano em que me encontro é 1700. Aliás, para ser mais exato, hoje é 23 de janeiro de 1700, e, antes que pergunte algo, o motivo de minha dedução é óbvio. O que pode ser um cara portando uma arma automática em janeiro de 1700, senão um viajante do tempo, certo?

Certíssimo.

– Só para concluir meu raciocínio: com certeza vim do futuro para corrigir algo que interferirá neste futuro, certo?

Correto. É isso mesmo.

– Desculpe-me, mas é tudo tão previsível, sabe, narrador? Como você, também pertenço a um mundo, o mundo dos personagens. Sempre que um conto ou romance começa a ser escrito, aleatoriamente somos convocados, e cá estou. Só que... me desculpe, mas esse tema está batido demais. Serei sincero. Não pega bem pra mim, que já tive a honra de participar de verdadeiras pérolas da literatura.

Mas...

– Não me leve a mal, mas neste contexto em que tenho uma arma inconsistente com a época, ainda considerando a arma, eu poderia ser tudo, menos um viajante do tempo. Como já disse, viajante do tempo, modificar o passado, é um tema batido demais.

Mas o tenente Coimbra não reclamou.

– Ora essa! Ele não reclamou porque é um personagem periférico. Aliás, pelo andar da carruagem, já até foi liberado, mas, ao que tudo indica, eu sou o personagem principal e terei de aguentar até o fim. Se for um conto, tudo bem, mas e se for um romance de quatrocentas páginas? Juro que não agüento.

É. De fato, estou pensando em um romance bem longo.

– Me poupe!

Mas eu gosto de escrever...

– Entendo. Se até o Fulano de Tal escreveu uma penca de livros...

Puxa! Você já foi personagem dele?

– Eu? Deus me livre! Vire essa boca pra lá! Por todos os pecados que já cometi na literatura, não mereceria um castigo desses. Santiago que o diga.

Por que? Aconteceu algo a ele?

– Se aconteceu? Nem te conto. Coitado... O papel dele no livro do, bem... não preciso dizer o nome, você já sabe quem é, foi tão marcante que ele mal consegue se desvincular do personagem que viveu, e quando convocado aleatoriamente por um autor ou autora, os mesmos acabam empacando na escrita, porque ele é incapaz de vestir a camisa do personagem idealizado pelo escritor. O Santiago sempre aflora no meio do processo. Aí, já viu. Não tem autor que aguente.

É

– E digo mais. Ele é o único personagem em meu mundo que precisou ser internado numa clínica de recuperação e não tem data prevista de alta.

Sei não. Se tivesse sido sorteado para mim, desconfio que neste momento ele já estaria na audiência com o rei da França. Nós, no entanto, continuamos em alto mar. Acho que o problemático aqui é você.

– Ei! Calminha! Vamos negociar! A hipótese de eu ser um cara que veio do futuro está descartada, certo? Pense em algo mais grandioso. Olha que eu mereço, hein?

Pode ser. O título que coloquei foi A INTERVENÇÃO, e foi exatamente o que você fez desde inicio do conto. Ah, está contente agora? Foi isso mesmo que você ouviu: CONTO. Portanto, a intervenção aconteceu e não há mais nada para ser escrito. Certo?

Roberto Afhonso
Enviado por Roberto Afhonso em 28/03/2013
Reeditado em 24/11/2017
Código do texto: T4212155
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