“Ringtone”
Jorge acordou naquela manhã, igual a qualquer outra, com a voz estridente de sua mãe. Com o passar dos anos, deixou de ser a “voz da mãe” e ficou catalogado na categoria de “ringtone”, desses mais populares, ditos “hits”. Afinal, um “hit” é um estouro, algo que arrebata a multidão. Multidões são fenômenos estranhos, pululam em estádios, praças e avenidas, aliás, bastante comum nestes dias. Praças e avenidas? Não, multidões, porra! Presta atenção, não divague.
Mas, aquela manhã não era igual a qualquer outra. Era domingo, mas mesmo assim “a mãe” parecia se incomodar com o filho, apenas porque este resolvera dormir mais, ou tinha ido tarde para a cama. Ir fora de hora para cama é falta grave, passível de punição. Punição que vem na forma do desconforto de ter sido acordado antes da hora e passar o dia com sono. Dormir depois do almoço? Nem pensar. Tinha de ir ao parque, ao clube, qualquer lugar aonde encontrasse um canto de sossego.
Não venho para o almoço, beijo.
Outra heresia. Como ousa perder o almoço de domingo, o que eu fiz de errado, aonde errei, meu Deus?! Volte aqui, menino! Estou mandando. Depois mãe, vou perder o ônibus, que virava a esquina batendo lata.
Chegando ao clube, Jorge logo foi para o lado das quadras de tênis, lá no fundo, perto do bosque. Muito cedo para as famílias dos churrasqueiros, cedo para os maconheiros, tarde para os praticantes de tai-chi, portanto, deve estar tranqüilo, com leve sombreado, com os raios de sol cortando por entre os galhos. Faltava a sonoplastia. Ligou o I-pod.
Mas que nada, eis que chegam três indivíduos disfarçados de Wimbledon, procurando a quarta pessoa para um jogo de duplas. Jorge tentou declinar, deu todo tipo de desculpa, mas os interlocutores pareciam não ver que sua indumentária não era apropriada, que não tinha raquete, providenciaram uma! Que não tinha proteção para o punho, eu tenho duas! Bolinha, temos! Deixa disso, um jogo só. E o pesadelo começou: quem eram aqueles caras, o que queriam, por que eu? Catso! Tem tanta gente no mundo, tanta alma carente, logo eu? Hoje não é meu dia... vou beber água. Anda logo, gritou um, deixa de moleza, “vamo-vamo”, gritou o outro.
Finalmente Jorge entrou na quadra e se posicionou. A bola veio a 100 km por hora, riscou o saibro e se alojou, sem cerimônia, na boca do estômago, 15/0. Segundo saque, a bola passou que Jorge nem viu, 30/0. Mas que coisa, como pode? Ao olhar para o outro lado da quadra, Jorge não viu seus adversários, foi até à rede, nada...
Cadê todo mundo, seu parceiro tinha sumido e Jorge mal teve tempo de ver a bolinha que lhe acertou a testa, fazendo-o cair sentado. Ao levantar-se desviou de outra bola. Ainda meio tonto foi olhar e viu: uma máquina, tresloucada, vomitava bolinhas de par em par. Uma para cada lado, em velocidade estonteante, alucinante. Tentou, sem êxito, rebater algumas, e pensou: o que estou fazendo aqui? Vou embora, lá para a sombra. Quando decidiu sair da quadra viu um fardado qualquer, parecia ter patente, mas não soube precisar.
Pois este fardado lhe garantiu ser o comandante daquela situação e que se não terminasse o que começou seria severamente punido. Punido? Pois é, punido. Pena de morte, no mínimo!
Volte e rebata as bolas, todas, sem exceção! Pedindo a Deus que lhe mandasse socorrer, voltou atento ao bombardeio, que a esta altura se tornara desenfreado. Depois de algumas horas de tortura, Jorge viu que as bolas haviam acabado e que a máquina pulava, tremia e cuspia nada. Exausto ,largou a raquete e se foi. Tomou um banho, no próprio clube, e foi na direção do ponto de ônibus. Uma surpresa, não havia alma na rua. Tudo deserto, tudo aberto. Todas as lojas, os carros, as coisas. Tudo estava lá, mas não havia ninguém. Aproveitando a oportunidade, Jorge foi se abastecendo pelo caminho, pegou guloseimas, objetos caros, outros nem tanto, tudo que podia carregar.
Ao chegar em casa, a surpresa: além de não ter nada nas mãos, seu cachorro lambia um fio de sangue que escorria por baixo da porta e subjugado, acabou algemado. Todos estavam mortos, trucidados, eviscerados, enfim: uma carnificina com requintes de crueldade.
Na delegacia, perplexo, perguntou: desde quando é crime deletar uns “ringtones”?