Com Estranhos
Se por um lado é certo que não devemos contar fatos de nossa vida a qualquer estranho, por outro lado, de forma paradoxal, é igualmente certo que não existe no mundo melhor ouvinte para os nossos problemas do aqueles que não nos conhecem, uma vez que estes, despidos de qualquer sentimento ou preconcepção anterior a nosso respeito, podem ver as coisas como elas realmente são. Em sendo assim, muito embora não nos conhecemos, leitor, peço permissão para expiar um estranho fato que me aconteceu recentemente, na esperança de que, quem sabe, compreenda a natureza do problema que me aflige.
Certo dia, depois que acordei, ainda permaneci vários minutos deitado em minha cama olhando ao meu redor. Com um olhar investigador, contemplava as paredes e os móveis do quarto, vez ou outra fixava a vista em algum lugar. Depois de passar em revista, duas vezes, todos os móveis do lugar, cheguei a conclusão de que, apesar de aquele quarto ser estranhamente familiar, não era o meu quarto.
Vários minutos de pura indecisão se passaram até eu finalmente decidir que, definitivamente, não estava no meu quarto. Mas, se não estava em meu quarto, onde eu estava? Teria saído ontem e exagerado na bebida? Não, definitivamente eu não saí ontem, muito menos andei bebendo. Mas então, como eu vim para aqui? Neste quarto estranho.
Ainda indeciso, resolvi que o melhor a fazer era sair o mais rápido possível daquele quarto. Levantei-me, e percebi que estava só de pijamas, de forma que achei melhor abrir o armário em busca de uma roupa mais apresentável. Ao abri-lo, tive uma surpresa: as roupas que estavam nele eram incrivelmente parecidas com as roupas do meu armário, mas de alguma forma – que eu não sabia explicar-, sentia que aquelas não eram as minhas roupas. Apesar de achar toda esta situação muito estranha, devido às circunstâncias, achei por bem pegar uma muda de roupa, com a promessa de devolvê-la o mais rápido possível.
Devidamente vestido, dei uma boa olhada no quarto onde me encontrava, na esperança de solucionar minhas dúvidas. Era um quarto grande, bem organizado, a pessoa que residia nele, ao contrário de mim, devia ser muito organizada...
Algum tempo depois, já estava pronto para sair dali quando a visão de uma foto encheu minha cabeça de dúvidas e medo.
Era a foto de uma pessoa, uma pessoa muito parecida comigo, praticamente idêntica, eu diria.
Com a cabeça latejando, questionei-me: Será que sou eu? Não, não é possível! Não me lembro de ter tirado essa foto. Não me lembro desse quarto, não me lembro de nada. Será que possuo um irmão gêmeo? Deve ser, está é a única explicação plausível...
Com a alma permeada de dúvidas e medo, achei por bem sair imediatamente daquele local, daquele quarto estranho.
Logo que sair, deparei-me com um longo corredor, que terminava em uma sala, onde algumas pessoas estavam sentadas tomando café em volta de uma mesa. Eram três pessoas: um homem de meia-idade, que estava lendo jornal, uma mulher, também de meia-idade, e outra mulher, muito mais nova, provavelmente filha deles.
Ao vê-los, não os reconheci de modo algum. Sem perceber, um tremor irracional percorreu meu corpo, provocando em mim um questionamento lógico: o que vão pensar ao saber que um estranho dormiu em sua casa? Não desejando encontrar a resposta para minha dúvida, achei que o melhor a fazer era sair o mais rápido possível daquele local, antes que algum deles percebesse a minha presença e começasse a gritar ou, quem sabe, fizesse coisa ainda pior...
Silenciosamente, dirigi-me a saída. Já estava quase chegando á porta, quando uma voz feminina me chamou.
- Ei, T! – disse a mulher mais velha. – Vem tomar café com a gente!
“Meu Deus, eles sabem meu nome? Talvez eles sejam meus conhecidos. Mas quem seriam? Eu nas os reconheço de modo algum!”, indaguei-me. Movido por uma curiosidade invencível de descobrir mais informações a respeito daquelas pessoas, sentei-me a mesa e comecei a tomar café junto com eles.
- Dormiu bem? – perguntou a mulher mais velha.
- Sim (ao menos era o que eu achava).
- Voltou que horas ontem?
- Não sei.
- Foi divertido.
- Foi (espero que tenha sido).
O interrogatório feito pela mulher foi interrompido pelo homem, que começou a falar sobre assuntos financeiros, mas eu não prestei muita atenção nisso. Estava, pois, muito ocupado com os meus pensamentos. Logo que acabei o café, levantei-me rapidamente e me dirigir à porta. Sentia um desejo quase homicida de sair daquele lugar. Mas meus planos de fuga novamente foram interrompidos pela mulher mais velha.
- Vai sair?
- Vou.
- Para onde?
- Não sei, vou da uma volta.
- Leva um casaco, está frio hoje, meu filho.
- Do que você me chamou? – perguntei assustado.
- De filho. Por quê? Não posso mais? – disse sorrindo.
- Pode, é claro (eu acho).
Despedi-me da mulher e sair daquele lugar. Minha cabeça girava, sentia uma leve ânsia de vomito. “Filho? Então aqueles eram os meus pais? Minha família? Então por que eu não os reconhecia? Será que sofro de alguma doença? Amnésia ou coisa do tipo?”, perguntei-me confuso.
Quando cheguei a rua, notei que havia de estranho com o sol. Ele estava fraco, sem calor, sem vida. “Então esse é o sol que vem contagiando poetas ao longo dos séculos? Que vêm inspirando amores e amantes desde o início dos tempos? Não, esta coisa fraca e sem calor não pode ser o mesmo sol que inspirou os poetas. E se for? Por que não me sinto contagiado? Contagia-me.”, pensei.
Enquanto caminhava, minhas ideias não tinham coerência. Custava pensar fosse no que fosse. Nos primeiros momentos pensei que havia enlouquecido, ou sofrido um acidente. Sentia uma vontade louca de me distrair, de esquecer esse dia estranho que estava vivendo. Mas logo as coisas pioraram, notei que também havia algo de errado com as pessoas... Estavam estranhas, sem vida. Pareciam máquinas, manequins.
Caminhei durante horas e horas. Já perto do anoitecer, sentei-me em um banco de praça e me pus a pensar sobre os acontecimentos do meu dia. “O que aconteceu com o mundo? Com as pessoas? Por que estão estranhos? Esse não é meu mundo. Essas não são minhas pessoas. Como vim parar aqui? O que estava diferente: eu ou o mundo?”, indaguei-me.
Pensei por horas e horas, mas não consegui achar reposta para essas perguntas.
Já de noite, decidir voltar para o local onde acordei, para a família que eu não reconhecia, para o mundo que não era o meu. De volta ao quarto, antes de dormir, desejei voltar para o meu mundo, se é que ele um dia existiu... Um mundo onde as pessoas não me eram estranhas e onde eu não me sentia um estranho.