O FANTASMA DO SINO

O FANTASMA DO SINO

Estórias de assombração normalmente não passam de longas anedotas, contadas com um bocado de exagêros e, quanto mais disntantes da realidade nossa de cada dia, mais atraentes se tornam.

Meu pai jamais confirmou o "causo" que ora relato -- cujos detahes me foram repassados por seu ajudante de caminhão, o "Zé Mineiro" -- não só por ser êle um tanto ateu mas também porque, poço de vaidades, nunca admitiria ter tido medo de algo que só existe mesmo na imaginação de uns quantos por aí.

"Zé Mineiro" era um jovem caminhoneiro a serviço de meu pai fazia longo tempo, espécie de "pau para toda obra" mentiroso como êle só, vício que acabou por deixá-lo na rua (ou estrada) da amargura, quando o "velho João" encheu-se de suas trapalhadas.

Meu pai, com quase cinquenta anos de direção nas costas, tinha vindo, visto e vencido os primeiros quilômetros da recém-criada Rodovia Transmazônica, nos anos 70 e, qual bandeirante pós-atòmico, arquivara histórias horrendas e fascinantes das suas viagens pela majestosa "barrovia".

Os primeiros dias dos desbravadores que singraram aquela veia amarela tatuada no corpo verde da imensa floresta são uma saga ainda não inteiramente contada aos seus pósteros. Tribos de índios ferozes a impedir a passagem dos velhos caminhões GMC, pontes caídas, veículos tombados dentro de rios, atolados ou quebrados, serpentes monstruosas espraiadas ao sol no leito arenoso da estrada, onças famintas saltando sobre o capô do motor e nordestinos aos trapos pedindo carona, fugidos de fazendas próximas nos quais estavam sendo escravizados.

Certo dia perdido no tempo, numa curva da Rodovia, papai deu de cara com um sujeito implorando socorro, buracos de bala na camisa ensanguentada e metade do rosto em chagas, com vermes dançando na ferida infecta. Insubordinara-se com os maus-tratos na fazenda e o capataz, como exemplar castigo, levara-o ao "paredón", enterrando o "morto" em cova rasa, onde permaneceu talvez por 30 ou 40 horas.

"Zé Mineiro" não é desta fase... meu ai o conhecera quando transportava minério para a Cia Vale do Rio Doce, entre Congonhas do Campo e a cidade fabril de Volta Redonda. A dupla pegava fretes de um ponto a outro do país, verdadeira loteria, ficando retidos num local à espera de carga às vezes por até duas ou três semanas.

Numa dessas viagens, noite alta e alguns goles de vinho a mais ( que o sereno estava frio!), papai ía ao volante, o que não era comum. "Zé Mineiro" parolava alegremente quando interrompeu o "lero-lero" para indagar apreensivo:

-- O que foi isso, "véio João", paréci baruio di sino ?!

Papai, que não ouvira nada, deu pouca importância à declaração do parceiro, fruto de excesso de vinho, com certeza.

Não demorou um minuto lá vem o mineirinho de novo com a mesma ladainha, agora com um tom nervoso na voz:

-- Credo in cruiz, sarve Rainha, Mãe de Misericóidia... o que havéra di sê, meu Pai do Céu? O sinhô não 'tá ouvino nada mêrmo ?!

Meu pai ouvira... Aconselhou calmamente ao rapaz que deixasse de besteiras, era só uma peça qualquer do caminhão que se soltara. De nada adiantou o arrazoado. O ajudante, de olhos arregalados, tornar-se histérico, falava aos berros em visagem, assombração, almas penadas, homens de chifre e pés de bode, com cheiro de enxofre e coisa e tal. E o diabo (êpa!) do sino badalava cada vez mais alto, era um gemido metálico e dolente no gélido negrume da estrada, as sombras bruxuleantes das árvores avançando seus corpos disformes sobre o caminhão.

-- Pisa, pisa fundo "véio João", que não vai sê hoje o meu dia! Por Nossa Senhora da Conceição, só quero morrê se fô lá no meu chão !

O pânico do "Zé Mineiro" era autêntico e, quando falou em morte, tocou num dos pavores secretos de meu idoso pai, que tinha horror a cemitérios. O medo mudara de dono e o maldito sino amplificara o sinistro som por toda a cabine do caminhão.

O velho João, todo adrenalina, exigia o máximo do veículo que gemia e corcoveava como alazão chucro num rodeio, as mercadorias quase rompendo as cordas na carroceria abarrotada.

Ao longe, no cimo de íngreme subida, avistaram uma luzinha tremeluzindo na escuridão, quase a tocar os céus. Era uma casa, uma pousada salvadora, a porta do Paraíso, a solução abençoada.

O caminhão inteiro tremia como geléia, os dois motoristas nem se apercebiam disso porque tremiam êles ainda mais e o veículo voava por cima de lombadas e buracos, enquanto o sino fantasmagórico invadia-lhes a amedrontada alma.

A luz no fim da serra (pléin, pléin) transformara-se em imenso farol (pléin, pléin) a iluminar tudo em derredor (pléin, pléin) e papai vislumbrou parado na beira da estrada, bem lá no alto, um outro caminhão. Finalmente, estavam salvos !

Aproximou-se à toda, freou com violência e estardalhaço, desceram ambos esbaforidos da boléia do caminhão e deram de cara com um gaúcho típico, de bombachas, bigodão e chapéu, a desenformar um imenso pneu que furara, com o auxílio da marreta e de uma cunha maciça de aço.

O barulho produzido pelo insano trabalho (pléin-léin-pléin) do solitário herói das nossas estradas em tudo se assemelhava ao badalar de um sino e a lâmpada elétrica alimentada à bateria abrilhantava a cena.

O gaúcho olhou espantado para a dupla de companheiros de lida e perguntou sorrindo:

-- Bah, tchê, o compadre terá visto alguma assombração por ai? Do jeito que vocês chegaram... quem v~e, pensa logo que os amigos viram algum fantasma ! Eh, eh, eh!

Meu pai presenteou "Zé Mineiro" com um olhar furibundo, este encolheu-se todo receando ver o velho João agarrado em seu frágil pescoço e, ansioso para "limpar a barra", retrucou sem grande convicção:

-- Vimo' nada não, seu moço... nóis 'tamo é cum pressa mêrmo, né "véio João" ?!

"NATO" AZEVEDO