Uá Tchow Bék Uen Iu Aték

Tem dias que ultrapassam as barreiras da ruindade.

Veja: tinha sido um dia complicado, maçante, longo e igual a uns mil outros. Retornei ao lar completamente defasado, sequioso pela tríade banho-comida-cama. Infelizmente não atingi aquela meta do ser humano que é ganhar rios de dinheiro e ter seu próprio espaço. Nem um regatinho miúdo eu podia ter.

Bom, a questão é que ainda moro na casa de mamãe. Morava, aliás.

E tenho um irmão cuja vida é resumida na tríade dormir-comer-jogar videogame.

Nós nos odiávamos e evitávamos nos olhar no olho o quanto fosse possível.

E eis que eu rolava na cama, não conseguindo dormir, apesar de estar semi-morto de cansado. E a televisão em alto volume. E luzes acesas. E portas se abrindo, fechando, batendo.

Enfiei o travesseiro na cara, apertei-o, bufei. Nada.

Desejei um ataque cardíaco, pra morrer calmamente. Não consegui um.

Levantei da cama e apaguei as luzes e abaixei o volume da televisão; deitei novamente e o volume subiu; tornei a levantar, abaixá-lo, deitar; aumentou novamente. Minha paciência se esvaiu aí.

- Cara, eu preciso dormir.

- Foda-se!

- Como assim, "foda-se"?

- Foda-se. É problema seu.

- Mas só estou pedindo um pouco de silêncio, de paz. Um volume razoável, luzes apagadas. Nada de muito excêntrico.

- Vai se foder, não se pode fazer nada nessa casa quando você tá aqui!

- Mas eu quase nunca estou aqui, cara. Só venho basicamente saciar minhas necessidades fisiológicas e dormir um pouco pra enfrentar esses dias intermináveis no trabalho.

Como disse, já estava sem paciência. No minuto seguinte vi-me colando-o à parede pelo colarinho. Eu estava puto. Muito puto.

- Escuta: eu só quero dormir, rapaz. Não vou poder passar o dia coçando o cu de tédio, engordando e sujando louça pra mãe lavar. Você vai me deixar dormir?

- Me solta!

- Vai ou não vai?

- Me solta, filho da puta!

Soltei, depois de afundar o punho em seu estômago. Arriou, de joelhos, ofegando.

Voltei pra cama. Não consigo não deitar de bruços, e estranhei que não estivesse conseguindo fazê-lo. Minha inquietação era com o silêncio repentino, quase sufocante, seguido por uns barulhos estranhos de coisas sendo reviradas.

A próxima coisa que vi depois que a luz foi acesa - depois do clarão vermelho que se diluiu em matizes de amarelo e azul em formas hexagonais, helicoidais, retas, circulares, enfim - foi meu irmão me apontando uma arma. A humilhação do soco havia feito com que ele transcendesse as barreiras do ódio que sentia por mim ao ponto de me apontar uma arma. Meu coração disparou, mas me mantive impassível.

Falei:

- Mas que merda é essa agora? Vai me matar? - E fui me aprumando, devagar, recostando no espaldar.

- Vou te matar! - E arma tremia quase que imperceptivelmente. Eu acompanhava o buraco com um olhar de indiferença.

- Já faz tempo que eu morri... Puxa o gatilho. Puxa! Pode puxar.

- NÃO SE MEXE!

Cruzei os dedos na nuca.

- Eu acordo todo santo dia pensando na minha morte, ambicionando meu derradeiro suspiro. Eu acordo todos os dias pensando em suicídio. Eu ando por aí com uma corda invisível no pescoço, com uma arma invisível debruçada sobre minha língua, com uma faca deslizando no meu antebraço. Puxe essa merda desse gatilho, caralho! Só uma puxada e você estará livre. E eu, seu carma, cara, mortinho, mortinho da Silva. Faz esse favor pra mim? Pro seu irmãozinho mais velho querido?

Terrorismo psicológico.

Como é mesmo a frase? Lembrei. Disse:

- "Quem não tem nada, não tem nada a perder", costumava dizer um amigo escritor. Se eu me matar conforme ando planejando, e se esse lance de Deus, Diabo, Céu e Inferno existir, eu estarei completamente fodido. Já escutou o que os espíritas têm a dizer sobre o processo de expiação da alma de um suicida? Deus que me livre! Mate-me, por favor.

E levantei assim que a arma baixou.

Chorava copiosamente, o menino.

Delicadamente, tirei o trabuco de suas mãos.

Abracei-o. Desabou sobre meu ombro.

Na minha mão direita, a arma.

Afasto-o de mim. Um manto paternal cai sobre meus olhos. Digo:

- Vá descansar você também. Dorme um pouco. Amanhã estaremos bem. Mudaremos depois disso. É com os erros que aprendemos, não é mesmo?

Soluçou um "aham".

Deu as costas.

Apontei.

Apertei uma, duas, três vezes. Da quarta em diante foram só cliques sem explosão, sem fogo, sem chumbo atravessando carne.

Já ouviu o que os espíritas têm a dizer sobre pessoas que se vêem sendo assassinadas? Digo, que olham no olho de seu algoz?

Deus que me livre ser assombrado nos meus únicos momentos de paz!

Arrastei o corpo de meu irmão até o quintal e voltei pra cama.

Dormi pesado e relaxado feito gato.

09/03/2013 - 00h00m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 09/03/2013
Código do texto: T4178997
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