AS CORRENTES DA PAIXÃO

Quinquinha era uma pretinha alforriada e já contava com seus dez anos de idade. Tinha o cabelo pixaim, as pernas finas, os olhos e o bucho grande. Ela parecia mais com um boi de melão-caetano, dois palitos enfiados num sabugo, dois cambitos segurando um caçuá. E não era bonita, não, a pobrezinha! A pretinha ainda era feinha que dava dó. Era mais feia do que indigestão de torresmo. Cresceu ali mesmo na casa grande e desde pequena já ajudava na lida da cozinha. Mesmo alforriada pela Lei do Ventre Livre, aprendeu cedo o que era o trabalho escravo na Fazenda. Mas era feliz. O patrão, dono da fazenda, apesar de ter muitos escravos, era um homem de ideais abolicionistas e não se presenciava ali o maltrato com os pretos, como ela ouvia falar. Mas não era bem assim.

O filho do patrão tinha quase a mesma idade da pretinha e herdara talvez do avô, que era português, a índole escravocrata e era dado a humilhar os pretos da fazenda. Dizia que a raça preta tinha sido feita para as correntes e para o açoite. Em sua repulsão figadal aos pretos, tinha uma predileção especial em oprimir a pobre Quinquinha, que envolta em sua inocência de criança, aceitava o assédio moral com a parcimônia de um monge. Muitas e muitas vezes, o mancebo divertia-se quando entornava sobre a cabeça de Quinquinha a panela de feijão ainda quente, causando-lhe queimaduras severas. Ainda não satisfeito com a atrocidade, lambuzava o rosto da pobre coitada esfregando-o no chão nos restos que sobrava, entre outras sevícias, sob o olhar severo do pai impotente e envergonhado, mas que nada fazia, além de lamentar as ações do filho.

Por conta desses abusos e da conduta criminosa do filho, mandou-o para a Corte, a fim de estudar. Talvez se emendasse e se tornasse um abolicionista, esperava o pai. Passaram-se então os anos e quando ele voltou, voltou esnobe e afetado. Atormentava-o a iminente possibilidade de a princesa Isabel assinar a abolição dos escravos.

Ao entrar na fazenda, acompanhado por um séquito de serviçais a levar-lhe as dezenas de malas, deu logo de cara com Quinquinha, já moça feita. Estava simplesmente linda, belíssima! Os olhos pretos como jamais vira. Os cabelos pretos trançados caiam-lhe nos ombros. Usava um vestidinho simples de cambraia, enfeitado de laços cor-de-rosa, deixando ver um par de pernas bem torneadas e coxas deliciosas, como ele nunca vira em nenhuma mulher branca nos salões de bailes que frequentava na Corte. Sem esconder o quanto estava surpreso, ensaiou um sorriso. Ela mal olhou para ele. Apenas dirigiu-lhe um singelo olhar sem nenhuma intenção de dar-lhe as boas vindas. A mágoa queixou-se no fundo da alma dela e as humilhações e o horror vieram à tona. Um fio de lágrima brotou em silêncio dos olhos pretos dela. Ele viu e estremeceu. Deixou-se cair numa poltrona. “E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração”. Ali mesmo ele adoeceu. Caiu em desgraça, febrilmente fulminado somente pela paixão e pelo desejo carnal. Naquele momento fora violentamente devastado e sua alma mesquinha foi açoitada e arrebatada para o inferno dos escarnecedores. Os dias e os meses se passavam e ele não pensava mais em nada, a não ser nela. Não comia, não bebia, não dormia. Passava a noite em claro, insone, embriagado pela “fada verde”, a escrever inesgotáveis sonetos de amor, saídos do fundo da alma miserável. Estava acorrentado a ela e nada mais importava. Chamava de amor o que na verdade era só paixão doentia. Queria possuí-la, mas não podia e isso o atormentava no meio da noite, açoitado, como por uma dor dilacerando as suas entranhas.

Prostrou-se numa cama e não mais saiu. Médico nenhum soube explicar o que o afligia. Em seus delírios noturnos, febril, pedia ao pai que ordenasse a Quinquinha que lhe fizesse uma visita, que lhe desse as boas vindas, que lhe dirigisse a palavra, afinal ela era uma escrava! Que a trouxessem acorrentada até ele! Implorava para vê-la e chorava copiosamente e, entre soluços, chamava por ela. O pai resignado e absorto velava o filho desgraçado, já moribundo, miseravelmente jogado sobre a cama em um emaranhado de sonetos, entorpecido pelo absinto e envenenado pelo arsênico, alheio à estrondosa euforia lá fora.

Era 13 de maio de 1888. A Lei Áurea havia sido então assinada no Paço Imperial às 15 horas pela Dona Isabel Cristina, a Redentora.