O Ciúme de Deus - Homenagem a minha mãe

Eu era um estranho no ninho - era assim que me sentia naquela casa grande e cheia de gente. Cinco quartos e um quintal enorme, com alguns pés de frutas. Certa feita subi bem alto no pé de goiaba, acabei achando um ninho de ratos calungas num nó de um dos galhos. Foi um achado maravilhoso. Fiquei muito alegre, visitava-os regularmente, até havia resolvido dividir a alegria com uma de minhas irmãs, e ela ficou pasma e assustada. Os ratos foram mortos. Uma pena, adorava ver os filhotinhos cegos se locomovendo no ninho abandonado de passarinho. Ali eu me isolava observando as aranhas tecendo suas teias, por entre os galhos do pé de pitanga. Acompanhava os pombos arrumando seus ninhos e aquecendo os ovos da ninhada. Amava-os e não gostava quando aquele homem de tez escura, usando um chapéu de vaqueiro, com o seu quase cinquenta e cinco anos de idade e exibindo um belo sorriso na face, chegar pra comprar as aves brancas.

Depois fiquei sabendo que os adquiria para trabalhos em terreiro de macumba, serviço religioso de orígem africana. Adorava quando alguns, depois de comprados, de certa forma escapuliam e retornavam. Conhecia-os e os chamava pelos muitos nomes que lhes dava. Xoxo, Danado, Chiquita...Elvis Presley, Daniel Boone.

Dentro de casa, muitas vozes, de timbres diferentes, de todas as idades. mais o som de um rádio ligado num programa de músicas romântica, confundindo-se com as vozes que saiam da tv. Vazavam as vozes de alguns vizinhos, com seus reclames, gargalhadas, e uma mulher berrando com o marido.

Era um menino estranho que ja entendia o mundo, a vida, as coisas complexas de uma tenra existência ja marcada pela constentação - reclames com Deus e com o Diabo, sem parar, noite e dia.

Por que, Deus as pessoas morrem? por quê o meu pai tem que viajar e nunca fica muito tempo comigo? Por quê o meu irmão cresceu - logo ele que eu vivia grudado, foi morar longe em outra cidade? Pra estudar tem que ir para longe? Assim, Deus não vou querer, não.

Desde que havia deixado de ser uma criança inocente, buscava diversos refúgios para se livrar da angústia e da solidão. Descobri os gibis de terror e os de histórias policiais. Colecionava-os, e quando não estava fazendo o dever escolar, lia-os com sofreguidão, isolado ali, num canto da casa, bem reservado para ter maior concentração. Gostava de tirar boas notas na escola, ficava triste quando tirava uma nota mediana.

Depois, descobri o futebol, então, ali fez muitos amigos e desafetos. Brigas, murros, xingamentos, arranhões e pancadas recebidas e dadas. Vida de moleque de rua não é fácil. A casa cheia de meninas, só eu de homem, depois chegaram mais dois irmãos, criancinhas. Obrigado, Deus por haver a gravidez - com ela, minha Mãe pôde ficar mais tempo em casa. Ela era falante, reclamava de tudo, mas tinha um amor pela sua prole, que só uma frase resumiria isso: Amor de Mãe, era só isso, amor de Mãe.

Tinha uma preocupação, aliás duas, e se minha Mãe morresse logo, deixando -nos, como seria, não sabia dizer. E se o meu pai morresse, ele que vivia mais longe do que perto, trabalhando em outra cidade a mais de 120 km. Temia um acidente de carro, assaltos na estrada - os filhos crianças, também sofrem assim, e pedem proteção ao outro Pai.

A distância, a escola, depois a faculdade roubou a amizade de meu irmão mais velho. Logo ele que eu vivia colado pra cima e pra baixo. O trabalho do meu pai e de minha Mãe me roubaram do carinho materno e paterno. Eu me sentindo tão so, mesmo com a casa cheia de gente. pensava assim, isolado num canto da casa. Eu era acompanhado pelas revistas e pelos livros.

E a casa cheia de gente- oito irmãs, e dezenas de amigas dentro de casa, no revezamento. Eu lia os livros dos pensadores, lia as obras dos depressivos, angustiados que achavam a vida um grande fardo. Quem sou eu, de onde vim, pra onde vou? Por quê viver, pra quê....Erasmo de Rotterdam, Maquiavel, Proust. Beaudelaire, Sócrates, Sofócles, Aristóteles, Platão, Freud, Buda ,Bhaktivedanta Swami Prabhupãda, Jesus...naquela época nem Jesus me respondeu. Então, li Poe, Lovercraft, Kafka.

É Deus- mas bem que podia ser uma Deusa. O pai so faz, é a Mãe que gera, e dai, cria-se um laço afetivo que a razão não explica. Tenho a certeza que até pode se um Deus, mas o sentimento que vem é de Mãe.

Naquela tarde fria de junho, além de frio intenso, uma chuva fina incessante. Lembro que conseguia com facilidade me manter afastado dela. Achava- a chata, as vezes. E, ela tão cuidadosa, cheia de amor pra dar. Eu não entendia o por quê de não conseguir me odiar, mesmo nas ofensas verbais não tinha a sinceridade que vinha do coração - pancada, nunca ela desferiu nos muitos filhos-, nisso ela foi admirável. Lutou tanto pela prole, a ponto de nunca ter faltado o pão de cada dia, em nenhum dia de sua existência. Até mesmo geladinho numa pequena caixa de isopor ela inventou de vender no pequeno box de miúdezas que possuía, por insegurança para poder trazer no fim da tarde o pão, o leite e a manteiga. E quando vendia, chegava com um sorriso na face, e antes de deitar preparava uma nova leva de geladinhos. No verão o sol era intenso, os fregueses de miúdezas, não. Os de geladinho, não faltavam.

Era um estranho no ninho, quando o assunto era amor materno. Naquela tarde fria de junho, viu o maior espetáculo da terra, uma demonstração de carinho, sentimento de proteção que jamais um pai faria. Ela aquecia com o próprio calor de seu hálito, a roupa que o pequeno menino iria vestir,eu. Embolava a peça de roupa, levava até a sua boca e a aquecia com hálito, ficava minutos assim.

- Pra que isso, Mãe...?

- Pra deixar a roupa aquecida pro meu garotinho.

No dia em que foi a minha de vez dele viajar e ficar longe de minha Mãe, para estudar e trabalhar, em outra cidade sabia que estava pronto para enfrentar o mundo, ou pelo menos, achava que estava - a maior das fortalezas era abdicar para sempre do amor materno, pensava assim. Sabia que seria assim, e foi.

Nunca mais tive no inverno, alguém para aquecer a roupa fria com o próprio hálito quente. Nunca mais pude ouvir sua voz, seus reclames, sua palavra de conforto,e os anos passando. Não recordava do dia que a tivesse abraçado ou beijado no rosto. Não me recordava de ter lhe dito uma palavra de carinho, e os anos passando. Normal, eu era apenas o filho- estranho seria se ela, que era a Deusa do amor agisse assim, afinal de contas, Mãe é Mãe, e devia se escrever com M maiúsculo. A distância desaquece o amor, e chegava a pensar que assim, Deus ensinava- o a desamar a Mãe para que sobrasse adoração por ele. O irmão mas amado vivia de cidade para cidade, de estado para cidade - e o amor esfriou- que assim seja Deus, não amo mais ninguém, quer o meu amor so para você, assim será. Pouco me importo aonde ele esteja, o que esteja fazendo, como está.

- Vou fazer os cabelos e pintar as unhas, chame a manicure e marque com a cabeleleira. Meus filhos vêm no domingo me visitar, quero ver todos aqui, comigo. Vai ter cerveja e um almoço, quero a casa cheia de netinhos.

Era inverno, ela iria usar o seu hálito quente para aquecer o frio de todos, mas Deus mais uma vez lhe pregou uma peça, com o seu ciúme de amor de Mãe, e um dia antes daquele encontro de família, morreu nos braços da filha que lhe dava mais dor de cabeça - e que ela nunca a abandonou, permanecendo junto dela, como fiel protetora.

Deus riu, quando viu que enfim, no seu velório a família estava, finalmente reunida para prestar a última homenagem ao único ser que supera Deus em amor, a Mãe. Para apimentar o ciúme que Deus tem das Mães, O calor do seu hálito permaneceu para sempre, depois daquele dia, no coração de seus filhos. É Deus, Mãe é Mãe.

Linhas escritas em homenagem à minha falecida mãe - que faleceu sem que eu a tenha visto em vida, uma pena. Sempre tive esse pânico, e aconteceu.

LG

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Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 06/03/2013
Reeditado em 07/01/2016
Código do texto: T4175174
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