DUMA INSÓLITA REALIDADE
Certo dia, uma convidada chegou quando todo o trabalho já parecia feito.
Ali se havia suado durante anos, construção por construção, história por história, coração por coração, beco após beco, tiro após tiro, medo após medo, numa construção sólida de sacrifícios indecifráveis...para todos.
Pelas manhãs se pulava os cadáveres da noite, os tantos que jaziam nas suas portas e então, com um nó na garganta, eles vinham contar...contar...contar as histórias...em meio a dor que já fazia parte da rotina das suas vidas.
Eram assim que aliviavam tamanho infortúnio: narravam...como a colocar para afora todas as feridas que por dentro os consumiam.
Os barracos pareciam os mesmos de todo o sempre, durante os anos daquele trabalho missionário que se delineava por ali, de soldados invisíveis, sempre a postos, trabalho suado, dolorido e doloroso, silencioso, aonde pelas mesmas mãos, as gerações apenas passavam inertemente aceleradas pela vida, a pular os esgotos da mesma viela de todas as histórias do morro desterrado de sempre, não só pela chuva sazonal, mas pela desesperança atávica.
Vez ou outra, comemorávamos juntos apenas um tábua recolocada sob uma caiação improvisada e caprichosa, a remendar um vácuo recém chegado.
O funk era a única alegria...mas temerosa também.
Mas ela não tinha medos. Durante anos, numa rotina enlouquecedora, ouvia a todos atentamente, como se fosse a primeira vez, por entre os atalhos de todas as pedras, pelos estalos de todos os ossos, aonde juntos sempre desvendavam os caminhos possíveis dentre aquele impossível inferno sempre tão perene.
Ali não eram só doentes físicos, eram doentes materiais, emocionais sociais, espirituais, daquelas doenças incontáveis e incuráveis que todos fingem não ver...
Psicose era a saída libertadora daqueles que negavam a dura realidade.
Quando tudo estava pronto, um dia, sem pedir licença ao mérito, uma convidada chegou.
E todo o milagre ruiu no tempo, como esculturas de gelo numa chama de caldeira, aonde ratos puderam se deliciar do infortúnio das vidas que nunca foram e urubús a espreita desceram dum escuro céu para sobrevoarem o resto funesto do tudo que acreditou ter sido.
E a convidada sequer percebeu que a morte chegara pelas suas vestes...