Venha... hoje eu quero te contar uma história.

Há poucos minutos algo me aconteceu...

O beco era escuro, imagine numa noite sem lua então. Os ratos corriam de um lado para o outro revirando os lixos, nadando no esgoto ao ar livre que os becos da cidade escondem do lindo centro. O cheiro de urina já é normal para quem passa por ali todos os dias, uns inclusive estão habituados com o cheiro em si próprios, já nem ligam mais. Ninguém se importa. No fim do beco podia-se ver uma pequena chama de luz, ou melhor, de fogo; algo parecido com um cigarro aceso. Alguém chora, fumando um cigarro, em um beco qualquer em qualquer cidade. Um choro sofrido, doído; daqueles que te tirar o ar, o peito até dói; os soluços ininterruptos, tentando ser abafados, porém, sem sucesso. Alguém sofre suas dores, e a de mais um mundo todo. O preconceito, o desprezo, a solidão; essas coisas, entre outras, sempre levam alguém para o fim do caminho: a loucura, a depressão...

Ecoando pelo beco vazio, o choro vai ao longe, no entanto, ninguém consegue ouvir; estão todos de ouvidos tampados –por opção. A fumaça se dispersa na escuridão, o pito do cigarro é jogado, aos poucos se apagando no chão molhado. É possível ouvir passos lentos, batendo de encontro às poças... a pessoa está indo em direção à saída daquela viela nojenta.

Na esquina havia pouca iluminação, nada comparado ao breu de antes. Foi aí que surgiu então, uma silhueta escorada na parede, o rosto –molhado- colado nos tijolos da loja de esquina. As lágrimas ainda escorrem muitas; os soluços ao menos ganharam um intervalo maior de um para o outro. A luz bateu naquele lindo rosto, apenas manchado pela forte maquiagem borrada; um corpo magro, não exagerado de te deixar pasmo, mas magro de te deixar nervoso ao ver a onda das costelas; um olhar vazio e triste; cabelos longos e escuros, tão pesados. Ela parecia um anjo, no entanto, um anjo que andava em maus lençóis.

Sem mais, foi seguindo desolada seu caminho de volta para casa. Segurava uma bolsa jeans com as imagens de seus álbuns prediletos costurados, alguns buttons, e todos os seus apetrechos ali dentro; levava também uma garrafa de gim na mão, das mais baratas, que só te deixam cheirando a álcool. O vento gelado bagunçava seu cabelo, e a deixava tremendo da cabeça aos pés, mas ela continuava; como se não estivesse sentindo dor, como se não estivesse sentindo nada. Alguns homens cantavam-na; outros –mais nojentos- esfregavam-se nela, falando palavras de baixo calão, sem classe nenhuma; todavia, ela não era garota ligada à classe, no mundo dela isso tudo era tão normal. Ela já se habituara a todas essas nojentisses; apesar de detestá-las, continuava a conviver com elas.

Seu olhar turvo torna o caminho simples em algo perigoso. Seu corpo treme, por necessidade dos remédios, das drogas... completa abstinência. Sua mente é uma confusão, impossível penetrá-la –mesmo eu querendo. Os faróis dos carros são como flashes que doem seus olhos, e a cegam naquele vai e vem contínuo de cidade grande. Entre um lamento e outro, bebia o gim no gargalo. Acho que no fundo, ela desejava mesmo é que uma bala perdida acertasse sua cabeça; com o tempo as dores tornam-se algo além de insuportável, imagine só isso...

Um suspiro longo e profundo. Ela estava cansada, mas já estava na frente do prédio, o cansaço passaria em breve. Seu suspiro foi uma mistura de alívio e intolerância; alívio por não ter que sentir frio mais uma noite, e intolerância por ter de aturar –querendo ou não- seu padrasto otário e sua mãe inconsequente. Pegou o elevador, não conseguiria subir as escadas no estado em que estava, apesar de ser melhor para evitar olhares perturbados em cima dela. Chegou. A tremedeira impediu-a de abrir a porta. Concentrou-se... respirou uma, duas, três vezes; escorada na porta com as duas mãos, tentava manter-se em pé e acertar a fechadura. Com esforço o trabalho foi feito.

Antes de rodar a maçaneta, permaneceu ali parada com o rosto rente à porta. Suas pernas tremem mais do que antes, e a fraqueza dominou-a. Por fim girou a maçaneta. Seu peso sobre a porta era tanto, que ao abri-la, seu corpo foi direto ao chão; fazendo com que, ao voltar, a porta ainda batesse contra seu corpo esticado na entrada da casa. Machucara-se feio, mas ela não se importava com aquela banal queda. Chorava compulsivamente... não por ter caído como uma idiota bêbada, mas pelas razões que fizeram-na se tornar uma idiota bêbada e drogada.

“Que razões são essas?” você deve estar se perguntando. Para você pode não ser nada, ou talvez possa ser da intensidade que é para ela, mas sabe levar de uma forma diferente e mais dura, talvez até mais fria. Essa garota, caída em minha frente, tão jovem e tão sem esperança. Porque sofres? Ela simplesmente é nova demais para conseguir suportar a maldade que assola o mundo, que assola as pessoas à sua volta, que assola em especial a ela. Ela não consegue entender o porquê de todos matarem uns aos outros, ela não aguenta ver pessoas e animais jogados na rua como se fossem um pedaço inútil de papel, ela não suporta a falta de atenção de sua mãe e a rejeição de seu pai. Ela detesta o fato de sua mãe amar mais ao dinheiro do seu padrasto a ama-la, aquele otário –concordo com ela. Ela detesta o fato de o mundo estar pelo avesso... Eis aqui uns dos motivos pelos quais essa garota chegou ao fundo do poço. Então, o que isso diz para você?

Ela não se levantou ainda. Continuou olhando para o teto enquanto suas lágrimas faziam o caminho contrário pelo seu rosto. Ninguém estava em casa, ela sentiu-se aliviada por isso. Não aguentava mais ficar ali, pôs-se de pé e foi para o seu quarto –esbarrando na cadeira da mesa de jantar e derrubando dois dos três vasos de planta que ficavam no corredor. Ao chegar em seu quarto ficou frenética em busca de algo, sua abstinência não a deixava raciocinar, é doído de se ver uma criança assim.

Levantou seu colchão e lá estava... uma seringa, uma colher e todos os apetrechos para que, enfim, pudesse injetar sua heroína direto à seu coração. Ao cogitar tal possibilidade, ela só sabia chorar e tremer, nada mais. Preparou tudo, e por um instante ficou observando aquela seringa suja pensando “Onde merda irei injetar isso em mim?” Escolheu injetar em seu braço, a dose poderia apaga-la para sempre, sem precisar sentir a dor de injetar direto ao coração. Então foi o que fez... Respirou fundo sentindo a sensação do remédio que a manteve viva por um tempo; droga a qual acabou com ela, mas também a fez suportar a maldita realidade por anos e longos anos; a "mesma coisa que a mata é a mesma coisa que a dá prazer". Com o rosto escorado na beirada da cama ela permaneceu, as lágrimas ainda caíam de seu rosto angelical, e sua respiração? Ela não respirava mais.

Não sou facilmente tocada, mas ao ver crianças em tal estado, isso parte-me o coração. A seringa ficou plantada em seu braço; seu rosto estava até calmo, mas ainda molhado e marcado. Pobre criança...

Saí andando pelo quarto, parei na porta e deparei com sua mãe ao lado do padrasto adentrando a porta da casa já arreganhada; e, perto da mesma, as coisas de sua filha estavam ao chão, inclusive a garrafa que deixava vazar todo o resto do gim. A mãe olhou o rastro da bagunça e seguiu desesperada para o quarto de Clarisse, passando literalmente por cima de mim. Enquanto a mãe observava o rosto sem vida de sua filha – mas ao mesmo tempo inundada dela ,será isso possível?!, pois é- chorava beijando seu braço que abrigava uma seringa, uma tão simples seringa, que tirou de uma vez por todas a dor daquela menina de quatorze anos.

Eu saí andando pelo corredor, senti pena da mãe; talvez ela não tivesse culpa... o que eu posso dizer, eu não sei do passado dela. Talvez sentiu o mesmo, ou passou pelo mesmo, no entanto soube lidar e aturar as durezas da vida. Talvez... Clarisse foi um dos raros casos que marcaram a minha passagem por aqui, são muito raros. Afinal sou eu: a morte. Não sinto tanta pena das pessoas. Muitos devem mesmo morrer, da mais cruel maneira, mas... aquela criança?! Oh, pobre criança...

TIP TU TIP TU TIP TU TIP TU ...

Continuei meu caminho. A duas quadras ha uma pessoa baleada com um tiro na cabeça –ironia do destino ou não?. Bom, acho que esta me pertence. Vou passar por lá, e quem sabe, passo aí na sua rua também... Mas, por favor, não me venham com mais crianças por hoje... Por favor, hoje não...

TIP TU TIP TU TIP TU TIP TU ...

BY: Morte.

Larissa Maciel
Enviado por Larissa Maciel em 02/03/2013
Reeditado em 07/09/2013
Código do texto: T4167167
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