O Noivo Cadáver

Reparei nas flores da trepadeira que caia por sobre o muro da sacada... Não direi que não tinham o mesmo viço, pois tinham. Os seus olhos, o mesmo brilho. Tudo tinha o mesmo viço, o mesmo brilho. Só eu não tinha.

Vim caminhando para casa, não direi que não havia sequer um gato na rua, pois vi dois. Mas só. E o silêncio reinava, a não ser quando os gatos se estranharam e iniciaram uma briga, pois ambos disputavam uma única barata que saiu do bueiro. De resto, caminhei ouvindo o toc toc do meu sapato na calçada, que estava úmida da chuva de ontem. A briga de gatos e o toc toc do meu sapato, foram o único entretenimento da noite, depois da notícia.

Não direi que cheguei em casa e chorei. Pois não chorei. Não direi que me embriaguei, pois cheguei e dormi. Não direi que tive pesadelos, pois dormi tranqüilo. Estranhamente tranqüilo.

Escrevi este e-mail ainda ontem, antes de ir para a cama. Foi a última coisa que fiz, antes de ir dormir. Ou seja, escrevo-lhe agora, quarenta minutos após nossa última conversa, mas quando leres, o hoje será ontem, pois ainda são onze e quinze. E o amanhã será só teu, assim como o hoje será um ontem só teu. A não ser que a memória se conserve nos que já se foram, ou se preferir, nos que já fomos, pois que a esta hora, durmo um sono frio e eterno em meus aposentos.

Caso ainda não tenham notado minha ausência, recomendo que avise o serviço funerário, e diga que o dinheiro do funeral está no criado-mudo ao lado da cama. Sabes que sempre gostei de praticidade. Na conta bancária, caso algum parente venha para o enterro e comente algo, diga que a encerrei há alguns dias, e que o dinheiro fora gasto meses antes do falecimento. Use esse termo, “falecimento”, pois os parentes do interior são cristãos presbiterianos e não gostarão de pensar que ardo em chamas, se pronunciares a palavra suicídio ou envenenamento.

O dinheiro que se encontra sobre o criado-mudo ao lado do meu leito de morte, é o último que tenho, é suficiente para o funeral, e ainda sobrará uma boa quantia, e é de minha vontade que seja doado aos pobres.

No mais, espero que tenhas um bom retorno à tua cidade, e que a festa de teu noivado seja no maior requinte, como sei que aprecias. Que os jornais de tua cidade anunciem teu casamento no jornal, ou pelo menos publiquem alguma foto ou ao menos uma pequena nota, parabenizando os noivos. Teu pai, que até então seria meu sogro, haverá de lamentar, mais que tu, a minha partida para os Campos Elíseos. Aliás, tenho uma caixa de charutos no guarda-roupa, e é de minha vontade que seja-lhe entregue, como lembrança de seu amigo e quase-genro. Muito boa pessoa, teu pai...

De tua mãe já não direi o mesmo, pois notava uma certa tensão, que só diminuía quando eu elogiava os bolos e os doces que ela faz, comparando-os aos incomparáveis bolos e doces que minha avó fazia. Na verdade, agora podes dizer a ela aquilo que numa noite embriagada deixei escapar, lembra-te? “Este vinho está tão insosso quanto os bolos da sua mãe”. Eu só não ri mais, naquela noite, por respeito a ti, na verdade, por medo de ti, pois tua histeria, longe de deixar-te agradavelmente bela, como deixa algumas mulheres nervosas, contigo tem efeito bem diverso: deixa-te com um aspecto ainda mais sombrio.

Quanto a teu destino, sugiro que dês fim a tudo que eu te dei, desde as cartas de amor, até as jóias e bolsas. Teu futuro marido, o que há de assumir a paternidade do filho que esperas, segundo me relataste há quatro dias, e segundo fizeste questão de reafirmar ontem, não gostará de lembrar de teu amor por mim, se é que ele, o teu amor por mim, existe, como me juraste ontem.

Recomento também que não dê meu nome ao teu rebento, caso nasça varão, como disseste ter em mente fazê-lo, pois ficará estigmatizada, a pobre criança, quando os comentários de tua cidade provinciana chegarem até ela, temperadas com a maldade das pessoas: “ele tem o nome do suicida que ia casar com a mãe dele antes de ela engravidar do Zé Pankada, nas férias”.

A propósito, espero que tenhas certeza de que é do tal "Zé Pankada" o filho que esperas, porque, posto que não é meu, e isso é certeza pois não posso ter filhos devido à cirurgia de vasectomia que fiz, e disso bem sabes, e posto que disseste que o mais provável é que seja dele o feto que enche teu ventre, presumo que disso não tens tanta certeza, e igualmente presumo que mandei matar a pessoa errada.

O dinheiro da conta bancária, foi bem empregado, caso tenhas certeza ser dele a cria que carregas. Arrume, pois, o quanto antes, outro pai para o fruto de tua leviandade, pois nem o finado Zé Pankada nem eu estaremos em condições de exercer a paternidade em corpo físico e presente. Aliás, o óbito por envenenamento, ocorrido na mesa de um bar, foi consumado ontem, segundo me confirmou o executor por mim contratado e muito bem pago, por telefone, naquele momento em que interrompi a nossa conversa, e que ficaste irritada, como sempre.

Debaixo do copo de conhaque do falecido Zé Pankada, em cima da mesa de bilhar, repousou um bilhete meu, parabenizando-o pela paternidade do rebento que esperas. Segundo meu contratado, o provável pai de teu rebento morreu sabendo que seria pai, afinal, era direito dele, e gosto de ser justo em minhas decisões.

Encerro aqui o nosso último assunto. Hoje, terás dois velórios para ir. Não farei conta caso compareças apenas ao velório do provável pai de tua cria, embora convenha a ti comparecer ao meu apenas, e dizer que era meu o filho que hás de parir. É uma dica que te deixo, e sugiro que antes consultes teu coração e tua consciência, ao invés de pedir os conselhos de tua mãe. Não por nada, mas não confio muito naquela velha ranzinza. E que bom poder dizer isso livremente, sabendo que jamais ouvirei-te esbravejar por isso...

Torço para que encontres logo, entre teus machos, algum que se candidate à paternidade de teu, ou, de “nosso” filho. Retiro-me da vida, para entrar para tua história, parafraseando nosso ex-presidente Getúlio. Aliás, teu pai creio que gostará dessa parte, pelo menos, eu e ele já falamos muito bem de Getúlio... Independente disso, lembro-me da profecia daquela tua amiga vidente: nossos destinos estarão cruzados, até a morte. E eu na época menosprezei, como deves lembrar-te. Pois é, nunca mais menosprezarei coisas do além...

Aguardo-te nos Campos Elísios, caso para lá me vá. A chave da casa onde jaz em frieza e rigidez mortal, o corpo que um dia amaste, está na porta, do lado de dentro. A porta não está trancada. Avise os agentes funerários, pois não quero perturbações nem bombeiros querendo arrombar a porta, até porque, a minha vizinha que já está de idade avançada e doente, também não gosta de barulhos e tumulto. Aceite o café que ela provavelmente levará ao velório, eu te convidei tantas vezes para visitá-la e provar daquele café, tu sempre recusaste! Quando vieres aos Campos Elísios, me dirás que tinha razão, é muito melhor que o da tua mãe (!).

Que a paz eterna que agora reina meus aposentos, reine também em tua alma. Adeus e boa sorte em tua nova jornada. Sei que me desejarias o mesmo, com o teu ar sombrio e indiferente, caso a despedida fosse de corpo presente. Assim, levarei para minha gélida morada a linda lembrança de teu gélido sorriso, que um dia amei e que ontem bebi, antes de dormir o sono eterno. Sem mais, adeus...

O Noivo Cadáver

Eron Levy
Enviado por Eron Levy em 26/02/2013
Código do texto: T4161089
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