A ÚLTIMA CHANCE

A ÚLTIMA CHANCE

Temmiko Nashapa era nissei ou sansei (nem sei, que essas coisas são bem complicadas), nascido no coração de São Paulo, num pedacinho do Japão incrustado em terras "brasirêras", no orientalíssimo bairro da Liberdade.

Criado e instruído como seus ancestrais o foram, geração após geração, Temmiko abrasileirou-se com o tempo e a convivência com a "galera" da periferia "classe média pobre-pobre" e, apesar do calvário que as gozações e trocadilhos com seu nome lhe proporcionaram, fez muitos amigos, assimilando o linguajar e os trejeitos da rapaziada esperta da área.

Assim que pode, trocou seu belo nome de batismo por um sonoro "Fernando" e os hábitos de labor persistente e diário, herdados dos produtivos pais, pela certeza de que um só jogo ou aposta resolveria seu futuro. Pôz para funcionar sua inteligência privilegiada e, após longos meses de constante análise dos resultados das loterias, estava pronto para o sucesso.

Meteu-se a contragôsto no ramo da pastelaria, num restaurante chinês (oh, quanta humilhação !) denominado "Hakata's Town" e passou duros e intermináveis meses varrendo e lavando o chão, além de esvaziar cestos de lixo. Seus pais sequer sabiam desse "emprego", pois "Nando" -- conforme o chamava a turma de videogames e bailes "techno" -- saía de casa muito bem vestido, todas as manhãs.

O montante de parte dos salários economizados mês a mês crescia no cofrinho em forma de templo japonês e Fernando passava horas esquecidas "rezando" sobre a estrambótica casinha, porque até simpatias êle aprendera. Não andava debaixo de escadas, esconjurava gatos pretos e, de família budista, habituara-se ao "sacrilégio" de fazer o sinal da cruz diante de cemitérios. Enfim, estava irreconhecível !

Quando o valor acumulado após tantos meses de suor e cheiro de pastel queimado atingira a almejada quantia o ex-Temmiko Nashapa deu adeus à chapa de "hamburguers" e ôvo frito (fôra promovido!), deu uma vistosa "banana" para o antipático "china" que gerenciava a loja e pediu as contas, juntando o saldo da rescisão aos seus direitos trabalhistas garantidos por lei.

Chegara o tão sonhado momento...a conjunção dos astros estava quase em seu ponto ideal, sob a regência de Libra, belo nome a lembrar cifrões. As moedas do milenar I Ching cantaram seu doce futuro de opulência e esplendor e, culminando esse raro período benfazejo, para o "tupi-nipo" Fernando iniciara o Ano do Dragão, sua fase de sorte e sucesso.

Retirou da gaveta os trezentos cartões da Lotomania, um jogo oficial que virara mania no país inteiro. Aquelas apostas lhe consumiram semanas de estudos profundos, noites e madrugadas em claro, analisando tendências e possibilidades.

Investiu seus conhecimentos de álgebra e física, de logaritmos, relatividade e até mesmo geometria para construir apostas que cobrissem todas as probabilidades, não deixassem ao acaso nenhum tipo de resultado. Desenhos verticais e horizontais, entrecruzados, perpendiculares, figuras de animais e aves, números marcados aleatóriamente, repetição de sorteios anteriores, os números mais e menos frequentes... tudo foi pensado, analisado meticulosamente e cravado "cientificamente". Com 50 números jogados pareceu-lhe fácil acertar os 20 do sorteio oficial.

As trezentas chances de fortuna rápida vibravam em suas amarelas mãos quando saíu do guichê de apostas. O resultado viria sábado à noite, via Internet, ou no domingo em todos os jornais do país. Ademais, homem precavido, guardara verba suficiente para quatro semanas de apostas. Mesmo que a sorte de início lhe fosse madrasta, no fim do mês estaria rico.

Uma vida de milionário era tão inevitável que Fernando não se abalou com o resultado da primeira semana, quando acertou alguns poucos cartões, com 16 pontos cada, o que representava em dinheiro uma micharia, a "bolada" só viria se acertasse todos os vinte números sorteados.

Na segunda semana, um breve instante de glória: 18 pontos num cartão, o dinheiro investido já lhe retornara, mas o que importava mesmo era dar "uma tacada" que mandasse para o espaço todos os problemas e preocupações. Contudo, quando o resultado da terceira semana saiu, seu ânimo abateu-se quase por inteiro. Acertar aquilo era impossível, nem mago poderia prever aquele "desenho"... por isso, ficaram acumulados os prêmios maiores. Mesmo assim, emplacou 17 pontos em dois míseros cartões.

Fernando dera a si mesmo uma última chance, a derradeira; afinal, segundo o horóscopo chinês aquele era seu ano de realização e progresso. Acompanhou ansioso o sorteio via computador, direto da sede da CEF, bola por bola, com seu PC informando a cada segundo quantos dos seus 300 cartões estavam no páreo. Os números saíam fáceis e o que era só pensamento positivo em Fernando transmutou-se de expectativa em certeza e, a seguir, num berro de samurai kamikaze, o coração a explodir no peito, a glória orgasmática a satisfazer o ego combalido. Seu dia finalmente chegara !

Tremiam-lhe as pernas e os joelhos se entrechocavam, os braços se agitavam descontrolados, as maçãs do rosto balançavam, a casa toda estremecia... a capital de São Paulo assistia boquiaberta de espanto e de terror ao primeiro terremoto do século, transformando arranha-céus em geléia de concreto e aço e a sala do sorteio num pandemônio, com o teto de gesso desabando por completo e os computadores que registravam os números sorteados entrando em pane geral, virando "bolas" de fumaça e fogo. Mais tarde, um boletim extra-oficial informaria à nação que o sorteio fôra anulado, com todas as apostas valendo para a semana seguinte.

Nem a sanguinária bomba "Fat Man" teria feito um estrago tão devastador em Temmiko-Fernando. Ainda chorava um mar de lágrimas quando o mais estimado amigo adentrou seu quarto.

Entre guitarras, periféricos de computador, posters de gueixas e montanhas de livros do curso superior de eletrônica que abandonara para "trabalhar", "Nando" contou ao "General" -- o amigo era muito "mandão", daí o apelido -- seu segredo e sua desdita.

Perdera mais de um ano de sua preciosa existência só para realizar aquele sonho e, agora, o cruel Destino lhe pregara aquela peça. Não queria saber mais do jogo... sua sorte acabara. Os deuses não lhe dariam outra chance!

Desfez-se dos 300 cartões e de suas respectivas apostas, dando tudo para o amigo. Celso ainda protestou: poderia ganhar desta vez, o que estava fazendo era loucura. "Nando" recusou todos os argumentos. O que quer que ganhasse, era seu. A sorte dele se fôra !

Oito dias depois a periferia da capital acordou em polvorosa... um jovem morador, dos mais humildes, acertara a sorte grande. Abiscoitara mais de meio milhão de reais, além de vários prêmios menores.

Quando a imprensa o procurou, Celso de Moraes, vulgo "General", confessou que ganhara as apostas de um amigo, desiludido com o adiamento do concurso que já o premiara.Perguntado se devolveria o fabuloso prêmio ao tresloucado rapaz, respondeu sem pestanejar:

-- "De jeito nenhum... êle fez estes jogos diversas vezes e não ganhou nada. Quando acertou, cancelaram o sorteio. Vai ver a sorte tinha que ir era prá mim mesmo. Só vou lhe dar uma bela moto... o "Nando" adora uma Harley Davidson incrementada!

E despediu-se feliz e faceiro, com a multidão em festa atrás de si.

"NATO" AZEVEDO