QUEDA E TIRO

QUEDA E TIRO

De terno e gravata em pleno verão dos anos 80, ziguezagueando por entre o formigueiro humano que tumultuava o trânsito na principal avenida do Rio, o office-boy do Banco Internacional caminhava apressado rumo ao centro nervoso onde se realizam as apostas, negócios e investimentos da Bolsa.

Na surrada maleta 007, em meio a canetas, clipes, restos de sanduíche do Mc Donalds e minicalendários pornográficos, um papelucho em 3 vias, original e duas cópias, valendo quase uma dívida externa de país latino. Com ar preocupado e um olho no relógio de pulso, o jovem voava rumo ao Banco Central, aos computadores que avalisariam aquela vultosa compra de ações, títulos, CDBs e RDBs, em nome de milhares de clientes do BI, de acionistas dele e com capital ativo do próprio Banco.

Qual sapo errante em autoestrada bandeirante, o rapazinho "pulava amarelinha" por entre os bólidos movidos a ódio e gasolina, ouvindo buzinas e palavrões. Avançava célere através das 4 pistas da Avenida Pres. Vargas, a equilibrar numa das mãos o sorvete de três bolas recém-comprado. Soldado de uma guerra sem armas nem canhões, só lhe faltavam 3 passos para alcançar a trincheira no outro lado quando uma das bolas escorregou paletó abaixo, espatifando-se na pista asfáltica.

Por um átimo de segundo o garoto desviou a retina do trânsito enlouquecedor para avaliar o estrago feito no adorado terno.

Ouviu-se um estrondo, freios rasgaram o betume amolecido, um corpo riscou o espaço qual cometa de carne e osso e a multidão de curiosos cravou os olhos ávidos de detalhes mórbidos sobre o infeliz atropelado.

O sangue quente e pastoso rabiscou no solo a ruína de milhares de famílias -- enquanto invadia a pasta de documentos e tingia de carmim a boleta amarela de 9 bilhões e não-sei-quantos mil cruzeiros. Na sala de computadores do Banco Central, com o pregão fechado impreterivelmente às 13,15h, ninguém entendeu porque o BI não honrara o investimento pré-acordado.

Lá fora, o distante som de sirene de uma ambulância lembrou a todos que Vida continua e, como diz um ditado popular... "enquanto o Mundo gira, A LUSITANA roda".

Em plena semana de festa da padroeira da cidadezinha, o linchamento do pescador que matara um amigo a facadas após rodade de bebidas fôra a gota d'água que esgotou o resto da paciência do pároco local, polonês sisudo, dinâmico e muito crítico, com o qual boa parte do povo cristão antipatizava de imediato.

À noitinha, o reverendo subiu ao púlpito apenas para verberar contra a barbárie, condenando a meia centena de justiceiros que arrastaram o corpo, qual Judas de sábado de Aleluia, pelas vielas do lugarejo. Cancelou a novena e a missa subsequente e exortou a todos que meditassem sobre o sucedido.

-- "Ninguém é melhor do que ninguém... perante a Lei de Deus e a lei dos homens somos todos iguais !", disse o vigário em tom que não admitia réplica. À saída da matriz o borburinho era grande, os buchichos de reprovação se ampliaram e a indignação cresceu qual maré de pororoca quando o sermão do sacerdote chegou aos ouvidos dos familiares da vítima, barqueiro abastado e querido no lugar, com inúmeros dependentes e empregados.

Na mesma noite, anjos encapuzados armados de paus invadiram a Casa Paroquial, enquanto a lua escondia-se atrás das nuvens, transida de pavor. O sol da manhã seguinte iluminou sobre o humilde catre do servo do Senhor apenas uma posta de sangue e ossos moídos, com os pássaros engaiolados cantando felizes mais um dia de vida na face da Terra.

O povo em geral, com algum espanto e um acerto alívio, aceitou bem a fatalidade, comentando com uma pitada de ironia que "se eram todos iguais, o padre era muito diferente deles". Talvez o fato servisse de lição, a fim de que o Arcebispo lhes enviasse alguém mais condescendente com seus hábitos, seus costumes e... tradições.

Finalmente aparecera um homem, com letra maiúscula, com cara e coragem suficientes para enfrentar a companhia estadual de habitação num combate desgual na Justiça. O processo corria na capital do país, pois a lei naquela região era "tábula rasa", estava desmoralizada, não valia um níquel. Ademais, a Banca Astronômica Nacional tinha interesses no caso e fizera pressão para que tudo fosse arquivado. Uma vitória do sujeito abriria precedentes danosos para a empresa.

Na nação da desigualdade e da injustiça, da corrupção e impunidade, do fausto ladeando a miséria, na terra da incompetência aliada à incúria e a uma total ausência de fiscalização em todos os setores êle, enfim, vencera.

Custara-lhe meses de angústia de angústia e humilhações mas, graças ao jovem promotor Inocêncio Guedes, uma liminar inédita nos anais do Tribunal dera-lhe ganho de causa. Acima da letra da lei, da Justiça de parágrafos e alíneas, havia a justiça moral, a que reconhece as necessidades vitais do homem (casa/alimento/liberdade), antes de conceitos burocráticos ou contratos oficiais.

Fôra derrotado o descaso da perdulária BAN, seu descompromisso com o mau uso por terceiros do dinheiro público, a intermediação desnecessária e prejudicial que ela sustentava (e incentivava) nas questões de moradia popular.

E, acima de tudo, dera-se merecida lição na CORJHA, reduto de conchavos vis, de negociatas espúrias, de projetos fantasmas, fonte de injustiças planejadas e vinganças direcionadas.

A Companhia Regional de "Jogadas" e Habitação - CORJHA pelo menos desta vez não poderia favorecer parentes e apaniguados de diretores e funcionários retirando na marra, das casas populares em atraso, as famílias que as pagaram por quinze anos ou mais. Num belo "negócio da China", entregava um casebre de 4 x 6 metros sem reboco nem pintura e retomava, vários anos depois, uma enorme residência com diversos cômodos, forro, muro e lajotada.

O ancião vencera todos e, numa decisão inédita, o juiz decretou que a CORJHA tinha direito tão-somente ao trecho da casa que originalmente ela entregara. As benfeitorias feitas quitavam junto à BAN o imóvel que, doravante, seria ocupado pelas duas famílias. Foi sustada ação de imissão de posse e o consequente despejo, criando jurisprudência contra a "ciranda de habitação" patrocinada pela BAN. Caríssima e maciça propaganda estatal incentivando a compra de habitação popular, tempos depois gastos absurdos com editais e citações de despejo nas páginas dos jornais de toda a Nação e, por fim, casas e prédios vazios invadidos pela população despejada de outras tantas casas e prédios, estes também abandonados.

Hoje, o heróico ex-mutuário divide sua casa com um protegido da CORJHA, mas ambas as famílias vivem em boa paz. "Seu" Atanagildo e a idosa esposa pagam pelo uso do banheiro e chuveiro, além das refeições preparadas em sua antiga cozinha pelos novos "inquilinos".

Já o posudo e arrogante doutor Nilson Thamal, espremido com a mulher e 3 filhas no quarto & cozinha que a Companhia oferecia como modelo de casa popular, tem que pagar pedágio cada vez que entra ou saí da residência, transitando constrangido pelo corredor lateral onde uma roleta registra a quantas anda a ganância e a insensibilidade de alguns (ou de quase todos os) homens públicos, que imaginam jamais passar pelas dificuldades e humilhações que impõem a tantos brasileiros, quando exercem seus cargos.

O caso é real e recente mas fica melhor no reino da fantasia. A estória gira em torno de um jovem jambeiro -- árvore frondosa de médio porte, que doa à humanidade "maçãs" cítricas com formato de cajús -- e sua densa e incômoda folhagem.

Industriada pelo marido a rotunda senhora acordou o vizinho dos fundos de sua casa, na rua anterior, reclamando que as folhas caídas sujavam seu exíguo quintal. A solução era cortar os braços, digo, podar os galhos que avançavam sobre o muro da distinta.

Aos irmãos cariocas não havia alternativa: recusar a "sugestão" era trocar aborrecimento sazonal por outro permanente.

Aquiesceram a contragosto! Armado de escada, imenso facão -- "terçado", nestas plagas -- má-fé e mediocridade em doses cavalares, o macho da megera arrasou com a terceira dimensão do jambeiro (plantado ao pé do muro pela mãe dos rapazes), reduzido agora a uma banda só.

Menos de 5 meses depois, a Natureza vingava-se da covardia produzindo frutos em dobro no lado que sobrou da indefesa árvore. Flagrada "pescando" com enorme vara os jambos maduros em plena hora da sesta -- quando o Pará inteiro "tira um cochilo" -- a santa matrona não se fez de rogada. Assomando o rosto de "Monalisa", tão comum na região, por sobre o muro, perguntou com ar inocente:

-- "Vizinho, posso tirar algumas frutas"?

-- "Pode sim, senhora... as que estiverem do seu lado do muro são todas suas". Com um sorriso amarelo, ela desliza igual jequitiranabóia de volta a seu quintal. Coitada ! Terá que aguardar 3 ou 4 anos até tornar a provar o intenso sabor dos rubros jambos. Às vezes, "aqui se faz e aqui se paga"!

Foi amor à primeira vista! Luizão, rapaz recém-chegado à discreta vila de poucas casas e Remo, garoto esbelto, talho fino e maneiras delicadas embora elegantes, nascido ali treze verões antes. Transbordando charme, com sutil rebolado, Remo voltava do supermercado sobraçando compras quando seus olharam se cruzaram. O que seus corações bradaram em silêncio valia por mil palavras. Tiveram ambos um sono intranquilo.

Filho único de pais separados, a jovem mãe satisfazia-lhe todos os caprichos, perdoando-lhe todas as faltas e crivava Remo de atenções e carinhos. Garoto caseiro, tinha por amigo e confidente, instrutor e modelo, outro jovem em tudo semelhante a êle, a quem apresentava como primo.

Rômulo era cópia um pouco mais velha (e mais experiente) do amigo e, com maior liberdade, "caíra na vida" muito cedo. Não demorou para que Remo lhe confessasse seu mais secreto anseio e êle, Cupido de gestos amaneirados e olhar indecente, apresentasse Luís à mãe carente e vaidosa do garoto.

Luizão tornou-se íntimo da casa, vivia de visitas à mãe de Remo, que a vizinhança curiosa fingia não notar. Passava horas no quarto jogando cartas ou dominó com Remo, trocando afagos, roçando beijos e carícias mais ousadas, ouvidos atentos ao menor ruído.

Quando a mãe descobriu já era tarde, uma paixão devoradora tomara conta do corpo & mente do jovem Remo. Quando a mãe do Luís descobriu, êles já se preparavam para fugir de casa e morar juntos, num "bangalô" que Rômulo providenciara e onde satisfazia suas taras. Quando as demais mães residentes na vila descobriram, o "triângulo das bermudas" estava formado, com Rômulo completando o trio e a mãe de Remo abrigando todos para evitar escândalos.

Hoje, vivem os três no melhor dos mundos, corpos suarentos enroscando-se num amor selvagem e sem freios, braços e pernas cabeludas enroladas como serpentes aos troncos oleosos e perfumados. Felizmente, estão a salvo de pontapés, pauladas ou de um destino pior, por serem todos êles "gente da terra".

-- Pai, estão usando seu santo nome em vão em todos os lugares... até naquele ridículo esporte chamado futebol, veja só !

-- Dileto Filho, êles são perigosos... não vá você morrer de novo e, pior, por nada !

-- Eu vou voltar e acabar de vez com estas heresias... "se Deus quizer"!

Desceu à Terra na semana de Natal de 2010, com bela coroa de louros sobre a cabeleira indócil e vestes de beduíno, em pleno "Saara" carioca, sufocado em eio à multidão sedenta de compras & presentes.

Tentou sem sucesso convencer a todos que era o Cristo em nova missão, visitou federações esportivas e Ministérios, governadores e doutores, igrejas e templos de todos os tipos e denominações, editoras e gravadoras, foi de Seca a Meca, do Oiapoque ao Chuí... até pousar na rica sede televisiva do Templo Mundial do Reino do Senhor.

Discretamente o Bispo-Chefe acionou sua segurança particular e o incauto Jesus acabou numa cela infecta de delegacia, onde a psicóloga de plantão recomendou imediato internamento no Manicômio Judiciário.

Por fim, durante a Semana Santa, Êle conseguiu convencer os demais internos a pregá-lo numa cruz, feita às pressas com as tábuas da mesa do refeitório.

Em breve iria ressuscitar, para regressar ao local de onde nunca deveria ter saído... nem da primeira vez !

Após anos de tentativas infrutíferas, o cientista indiano Bapraput Kep'riw finalmente desenvolvera com sucesso sua experiência final: o "human bonsai". Exibido no mercado central de Bombaim -- com os braços absurdamente retorcidos e os dedos das mães esticados ao extremo -- o menino de olhar triste esboçava pálido sorriso, correspondendo à curiosidade geral.

Sobressaltado em meio à multidão o jovem rosto de ar altivo equilibrava-se no topo de esguio pescoço, alongado pela força de engenhosas argolas.

Apenas uma coisa o incomodava: os 2 vasos nos quais o plantaram eram pequenos demais para seus pés. Condoídas com a situação, entidades de defesa dos direitos humanos do país inteiro exigiram rega mensal e somente uma poda por ano.

"NATO" AZEVEDO