AS ESTRADAS DO SERTÃO
Vaqueiro, caixeiro viajante ou andarilho, por mais valente que seja, sabe que não se deve andar sozinho pelas estradas no meio do sertão. De jeito maneira! Principalmente quando escurece. Ou quando as noites ficam brancas de dar medo, com aquela lua cheia lá no alto, ora se escondendo por detrás da serra, ora alumiando as estradas desertas e sinuosas. O chão fica todo prateado até onde a vista alcançar. Tudo fica em silêncio e não se ouve nem o canto penoso da acauã agourando, chamando a seca pro sertão. Tudo adormece.
Pois bem. Lá numa pequena localidade na Ribeira do Acaraú, vivia uma senhora filha de português, proprietária de uma grande e sortida bodega que abastecia toda a região do vale, conhecida de todos por dona Carmosa. Tendo aprendido o ofício do comércio com o pai, homem justo e honrado, herdou, porém, dos mascates portugueses, o péssimo hábito de enganar no troco. Eram corriqueiras as discussões na porta da bodega por causa disso. Quase sempre ela ganhava no grito e não devolvia o que tinha surrupiado.
- Isto fica pelo desaforo por me chamares de ladroa! – tilintava as moedas nos enormes bolsos do avental.
- Com mulher de bigode, nem o diabo pode! – Caçoavam de longe, pois temiam enfrentá-la, pois diziam que tinha uma boa pontaria com o cabo da vassoura.
Certa feita, dona Carmosa recebeu em sua bodega, o velho Alfredo. Homem educado e honesto, que vinha todo sábado adquirir mantimentos, entre outros artigos para seu comércio na localidade de Jurema. Nesse dia, num pequeno descuido dele, apresentou-lhe confusas multiplicações, somas e provas dos noves, surrupiando-lhe quantia considerável. O velho só percebeu o golpe quando já estava a léguas de distância. Passou a semana inteira remoendo a ânsia de desmascará-la e exigir-lhe a devolução do dinheiro surrupiado de forma execrável, prometendo a si mesmo puni-la de forma exemplar.
Na sexta-feira, já passava das dez horas da noite quando ele selou o cavalo. Pretendia chegar bem cedo no sábado, ainda de madrugada para surpreender a velha portuguesa.
- Vamo cum eu, Zé Vaqueiro, que é pru mode nóis ir proseando! – disse já montado em riba do cavalo.
- Ôxente! Vô é nada, seu Alfredo! Doido é quem pega echa estrada de noite, inda mais com echa lua aí, alumiando feita a peste!
- Caba frôxo! Pois eu vou é sozim mermo! Tenho lá medo de nada! – E saiu no rumo da ribeira, avexado que só cão. A solidão e o silêncio da noite lhe acompanhavam e a lua branca prateava o chão, movendo de vez em quando umas sombras enormes. Tudo estava quieto.
Pois deu-se que no meio da estrada, seu Alfredo vislumbrou alguém de cócoras, debaixo dum pé de angico. Dava pra ver direitinho uma pessoa agachada, parecendo uma mulher, vestida de preto. O cavalo nada percebendo partiu de encontro daquela figura, quase passando por cima, não fosse a ação rápida do velho, puxando as rédeas para o lado, desviando o cavalo de pisotear a tal pessoa.
- Tá ficando doido, cavalo? Num tá veno a muié aí não? Ôxente! – gritou ao mesmo tempo em que olhava para debaixo do pé de angico e reconhecendo de pronto a dona Carmosa, de mãos postas, em posição de penitência e um terço pendia-lhe entre os dedos.
- Dona Carmosa! Que diacho a sinhora tá fazeno aqui numa hora decha, no mêi deche mato? Ôxente! Já tava indo lá falar justamente com a sinhora!
Foi quando o vento fez um redemoinho, levantando poeira, cascalhos e folhas secas, assustando o cavalo. A muito custo o velho conseguiu controlar o animal que, exasperado, circulava freneticamente em volta do pé de angico. O velho Alfredo procurou dona Carmosa por um bom par de horas e não encontrando, rumou para a cidade, pois já estava amanhecendo. Ao chegar à bodega, encontrou o marido de dona Carmosa do lado de fora. Até parecia que ele já o estava esperando.
- Tome seu Alfredo. – entregou-lhe um maço de dinheiro, embrulhado em papel – A Carmosinha me pediu para lhe entregar. Ela se arrependeu amargamente de ter lhe enganado naquele dia. Passou muito mal e adoeceu da noite pro dia. Morreu no dia seguinte, de repente.
O velho Alfredo montou o cavalo. Estava pasmo. O suor frio lhe escorreu pelas costas e pernas. Sentiu uma tontura e um calafrio. Sossegou um pouco a vista turva olhando o nascer do sol e se lembrou do que o povo dizia. Que as estradas do sertão tem uma história em cada curva. E não é bom andar por aí sozinho pelas estradas no meio do sertão. Principalmente quando escurece. Ou quando as noites ficam brancas de dar medo.