CAIM e ABEL...
Aquele parto, de alto risco, tinha tudo para não dar certo...
Os gêmeos haviam trocado de posição várias vezes. Parecia que estavam travando uma briguinha particular para ver quem nasceria primeiro. Por isso, o cordão umbilical de um estava sufocando o outro. Os médicos fizeram das tripas coração para evitar uma tragédia. Finalmente, conseguiram fazer com que eles nascessem sãos e salvos...
A mãe, Eva, pobre criatura, o cérebro menor que o de uma galinha, mais fanática do que crente, enxergou naquele fato um milagre. Só podia ser um aviso de Deus. Uma revelação...
Um irmão quase matando o outro, pensou, só se comparava com a passagem bíblica de Caim e Abel...
Isto mesmo. Era um sinal divino. Para provar que ninguém é mal de nascença. A vida sim é quem modifica as pessoas. Daí, a limitada mulher teve uma “brilhante” idéia. Mudar a história. Resgatar um nome até hoje desprezado e amaldiçoado, sinônimo de traição e covardia. Num instante de suprema estupidez, decidiu que o filho que quase enforcara o irmão com seu cordão umbilical seria chamado de Abel. O outro que quase morrera sufocado, seria chamado de Caim...
Agindo assim, pensava ela, ajudaria a mudar o pensamento das pessoas. Provaria que Caim era um nome como outro qualquer. Que as crianças podiam ser tranquilamente batizadas com ele. Sem maiores traumas. Sem nenhuma conseqüência. Não adiantaram os protestos do marido ou de sua comadre e futura madrinha das crianças que ponderava: “Ninguém merece ser chamado de Caim! É um nome amaldiçoado!”...
Dona Eva, apesar do inconformismo do marido, do medo da comadre e da relutância do padre Nilo, vigário da Capelinha, acabou batizando seus filhos assim...
Os dois jovens, esbeltos e fortes, cresceram correndo pelas ruas do Taveirópolis...
Caim era extrovertido. Brincalhão. Rebelde. Corajoso. Gostava de contar piadas. De praticar esportes. De cantar. De dançar...
Abel era quieto. Introvertido. Calado. Observador. Não gostava muito de brincadeiras, nem de festas...
Caim vivia cercado pelas meninas. Uma de suas brincadeiras favoritas era assustar as pessoas. Escondia-se atrás de moitas, árvores, carros, para poder apavorar os outros. Aparecia de repente, gritando palavras desconexas, agitando os braços como um louco. Fazia o coração do pobre assustado quase sair pela boca. De medo...
Abel, ao contrário, vivia cercado de livros. Gostava de estudar. Repreendia seu irmão. Detestava aquelas brincadeiras. Queria ficar quieto. Precisava estudar, progredir. Desejava ser alguém na vida. Não tinha tempo a perder...
Assim, os dois foram crescendo. Unidos, mas diferentes...
Ao completaram dezoito anos, se alistaram. No Exército. Quando se apresentaram para a seleção, o espírito brincalhão de Caim assustou os examinadores. Um tenente explicou para seus pais que o quartel preferia trabalhar com gente séria. Dispensaram Caim. Isso era exatamente o que o rapaz queria. Comentou: “Já pensou ficar o dia inteiro vendo aquele monte de barbados de calção?”...
Abel, no entanto, querendo ou não, foi obrigado a servir. Sentou praça e foi destacado para o quartel mais isolado de Campo Grande. Lá nos altos do Santo Amaro. Num “stand” de tiro. Perto do cemitério do Santo Amaro. O lugar mais parecia uma reserva ecológica, um horto florestal. Durante o dia tudo bem, mas quando a noite descia, as coisas mudavam. O lugar era visitado por lobinhos, raposas, quatis, ratazanas, corujas e aranhas. A escuridão aumentava a insegurança...
Ao descrever esta nova realidade para a mãe, Abel, sem querer, despertou em Caim uma idéia de jerico: assustar o irmão...
Os dias passando, aquele retardado foi arquitetando seu plano. Teria que ser no dia em que Abel ficasse de pernoite. Quando fosse escalado para ficar de guarda naquele fim de mundo. Ia ser divertido, sensacional. Depois, é claro, para fazer as pazes, juntos tomariam umas cervejas e jogariam sinuca no Az de Ouro ou no Bar Ventura...
Dito e feito. Algumas semanas depois, Abel foi escalado para ser uma das sentinelas de plantão. Teria que cumprir o turno das onze da noite até as três da madrugada. O pior horário para um pobre mortal ficar acordado naquele lugar mal assombrado. Lá, contavam os soldados mais antigos, até lobisomem aparecia. Por isto, na hora em que Abel assumiu seu posto, era o homem mais assustado do mundo. Pobre coitado. Nem piscava. Nenhuma luz. Nem luar. Tudo escuro. Só o barulho dos grilos e dos pássaros noturnos. Latidos. Uivos. Galhos quebrados pelo vento frio e cortante do Inverno...
O jovem suava frio. De medo. De terror. Encostou suas costas na vetusta guarita de madeira. Apoiou o cabo de seu velho fuzil contra o peito. Contrariando todas as normas militares, puxou uma bala para a agulha. Pensou: “Qualquer coisa, eu mando chumbo!”. Rezava para que as horas passassem rápidas...
Enquanto isto, o abusado e brincalhão Caim descia do último ônibus noturno que passava pelos altos do Santo Amaro...
Beirava a meia-noite quando, sorrateiramente, se aproximou do quartel onde seu irmão estava de guarda. O susto, para valer a pena, tinha que ser grande. Já havia preparado o clima na véspera. Antes de irem dormir, ele contara para Abel histórias de lobisomens, almas penadas, zumbis e monstros. Jurou que eles costumavam aparecer nos altos do Santo Amaro, nas noites escuras e sem luar...
Ao chegar perto daquela escura guarita, viu a silhueta do irmão desenhada contra a luz da única e esmaecida luminária pendurada no muro de entrada...
Com um sorriso de ironia nos lábios, jogou o casaco sobre a cabeça. Tentou misturar-se com a escuridão da noite. Parecia que até o vento se recusava a soprar por aquelas bandas...
Bem devagar, caminhou cuidadosamente na direção do portão do Corpo da Guarda...
Cambaleando, agitando as mangas do casaco, imitando o rosnar de um animal furioso e faminto, começou a se aproximar cada vez mais de seu irmão, aquela altura a mais assustada das sentinelas...
Sua sombra, fantasmagórico vulto projetado no muro do quartel, era quase sobrenatural...
Para piorar a situação, Abel ainda guardava na memória as histórias de terror que Caim lhe contara na noite anterior...
Começou a suar frio quando percebeu a silhueta escura deslizando pelo muro do quartel. Completamente transtornado, sem saber o que era aquilo que caminhava na sua direção, se esqueceu das mais elementares recomendações de seus superiores. Não respeitou as normas do Regulamento do Exército. Não se lembrou das lições primárias que uma sentinela tem que obedecer. Não perguntou quem vinha vindo. Não gritou para que parasse. Não deu nenhum alerta. Não fez nenhuma advertência. Nenhuma vez. Tremia como vara verde ao vento. Seus dentes batiam desesperados uns contra os outros. Estava apavorado...
Ergueu o fuzil. Nem fez mira. De olhos fechados, disparou. Um tiro só...
Bem no meio da testa...
O “lobisomem”, ou seja lá o que quer que queiram que Abel pensara que fosse, sem dar um gemido, caiu durinho para trás. Mortinho da silva...
Acreditem: Abel acabara de matar Caim...
A mais triste e desonrosa passagem bíblica acabara de ser reescrita. Infelizmente, de novo, tinha um final infeliz...
Não aquele, bucólico e simples, com a qual a desesperada e infeliz Eva havia sonhado a vida inteira...
***
Aquele parto, de alto risco, tinha tudo para não dar certo...
Os gêmeos haviam trocado de posição várias vezes. Parecia que estavam travando uma briguinha particular para ver quem nasceria primeiro. Por isso, o cordão umbilical de um estava sufocando o outro. Os médicos fizeram das tripas coração para evitar uma tragédia. Finalmente, conseguiram fazer com que eles nascessem sãos e salvos...
A mãe, Eva, pobre criatura, o cérebro menor que o de uma galinha, mais fanática do que crente, enxergou naquele fato um milagre. Só podia ser um aviso de Deus. Uma revelação...
Um irmão quase matando o outro, pensou, só se comparava com a passagem bíblica de Caim e Abel...
Isto mesmo. Era um sinal divino. Para provar que ninguém é mal de nascença. A vida sim é quem modifica as pessoas. Daí, a limitada mulher teve uma “brilhante” idéia. Mudar a história. Resgatar um nome até hoje desprezado e amaldiçoado, sinônimo de traição e covardia. Num instante de suprema estupidez, decidiu que o filho que quase enforcara o irmão com seu cordão umbilical seria chamado de Abel. O outro que quase morrera sufocado, seria chamado de Caim...
Agindo assim, pensava ela, ajudaria a mudar o pensamento das pessoas. Provaria que Caim era um nome como outro qualquer. Que as crianças podiam ser tranquilamente batizadas com ele. Sem maiores traumas. Sem nenhuma conseqüência. Não adiantaram os protestos do marido ou de sua comadre e futura madrinha das crianças que ponderava: “Ninguém merece ser chamado de Caim! É um nome amaldiçoado!”...
Dona Eva, apesar do inconformismo do marido, do medo da comadre e da relutância do padre Nilo, vigário da Capelinha, acabou batizando seus filhos assim...
Os dois jovens, esbeltos e fortes, cresceram correndo pelas ruas do Taveirópolis...
Caim era extrovertido. Brincalhão. Rebelde. Corajoso. Gostava de contar piadas. De praticar esportes. De cantar. De dançar...
Abel era quieto. Introvertido. Calado. Observador. Não gostava muito de brincadeiras, nem de festas...
Caim vivia cercado pelas meninas. Uma de suas brincadeiras favoritas era assustar as pessoas. Escondia-se atrás de moitas, árvores, carros, para poder apavorar os outros. Aparecia de repente, gritando palavras desconexas, agitando os braços como um louco. Fazia o coração do pobre assustado quase sair pela boca. De medo...
Abel, ao contrário, vivia cercado de livros. Gostava de estudar. Repreendia seu irmão. Detestava aquelas brincadeiras. Queria ficar quieto. Precisava estudar, progredir. Desejava ser alguém na vida. Não tinha tempo a perder...
Assim, os dois foram crescendo. Unidos, mas diferentes...
Ao completaram dezoito anos, se alistaram. No Exército. Quando se apresentaram para a seleção, o espírito brincalhão de Caim assustou os examinadores. Um tenente explicou para seus pais que o quartel preferia trabalhar com gente séria. Dispensaram Caim. Isso era exatamente o que o rapaz queria. Comentou: “Já pensou ficar o dia inteiro vendo aquele monte de barbados de calção?”...
Abel, no entanto, querendo ou não, foi obrigado a servir. Sentou praça e foi destacado para o quartel mais isolado de Campo Grande. Lá nos altos do Santo Amaro. Num “stand” de tiro. Perto do cemitério do Santo Amaro. O lugar mais parecia uma reserva ecológica, um horto florestal. Durante o dia tudo bem, mas quando a noite descia, as coisas mudavam. O lugar era visitado por lobinhos, raposas, quatis, ratazanas, corujas e aranhas. A escuridão aumentava a insegurança...
Ao descrever esta nova realidade para a mãe, Abel, sem querer, despertou em Caim uma idéia de jerico: assustar o irmão...
Os dias passando, aquele retardado foi arquitetando seu plano. Teria que ser no dia em que Abel ficasse de pernoite. Quando fosse escalado para ficar de guarda naquele fim de mundo. Ia ser divertido, sensacional. Depois, é claro, para fazer as pazes, juntos tomariam umas cervejas e jogariam sinuca no Az de Ouro ou no Bar Ventura...
Dito e feito. Algumas semanas depois, Abel foi escalado para ser uma das sentinelas de plantão. Teria que cumprir o turno das onze da noite até as três da madrugada. O pior horário para um pobre mortal ficar acordado naquele lugar mal assombrado. Lá, contavam os soldados mais antigos, até lobisomem aparecia. Por isto, na hora em que Abel assumiu seu posto, era o homem mais assustado do mundo. Pobre coitado. Nem piscava. Nenhuma luz. Nem luar. Tudo escuro. Só o barulho dos grilos e dos pássaros noturnos. Latidos. Uivos. Galhos quebrados pelo vento frio e cortante do Inverno...
O jovem suava frio. De medo. De terror. Encostou suas costas na vetusta guarita de madeira. Apoiou o cabo de seu velho fuzil contra o peito. Contrariando todas as normas militares, puxou uma bala para a agulha. Pensou: “Qualquer coisa, eu mando chumbo!”. Rezava para que as horas passassem rápidas...
Enquanto isto, o abusado e brincalhão Caim descia do último ônibus noturno que passava pelos altos do Santo Amaro...
Beirava a meia-noite quando, sorrateiramente, se aproximou do quartel onde seu irmão estava de guarda. O susto, para valer a pena, tinha que ser grande. Já havia preparado o clima na véspera. Antes de irem dormir, ele contara para Abel histórias de lobisomens, almas penadas, zumbis e monstros. Jurou que eles costumavam aparecer nos altos do Santo Amaro, nas noites escuras e sem luar...
Ao chegar perto daquela escura guarita, viu a silhueta do irmão desenhada contra a luz da única e esmaecida luminária pendurada no muro de entrada...
Com um sorriso de ironia nos lábios, jogou o casaco sobre a cabeça. Tentou misturar-se com a escuridão da noite. Parecia que até o vento se recusava a soprar por aquelas bandas...
Bem devagar, caminhou cuidadosamente na direção do portão do Corpo da Guarda...
Cambaleando, agitando as mangas do casaco, imitando o rosnar de um animal furioso e faminto, começou a se aproximar cada vez mais de seu irmão, aquela altura a mais assustada das sentinelas...
Sua sombra, fantasmagórico vulto projetado no muro do quartel, era quase sobrenatural...
Para piorar a situação, Abel ainda guardava na memória as histórias de terror que Caim lhe contara na noite anterior...
Começou a suar frio quando percebeu a silhueta escura deslizando pelo muro do quartel. Completamente transtornado, sem saber o que era aquilo que caminhava na sua direção, se esqueceu das mais elementares recomendações de seus superiores. Não respeitou as normas do Regulamento do Exército. Não se lembrou das lições primárias que uma sentinela tem que obedecer. Não perguntou quem vinha vindo. Não gritou para que parasse. Não deu nenhum alerta. Não fez nenhuma advertência. Nenhuma vez. Tremia como vara verde ao vento. Seus dentes batiam desesperados uns contra os outros. Estava apavorado...
Ergueu o fuzil. Nem fez mira. De olhos fechados, disparou. Um tiro só...
Bem no meio da testa...
O “lobisomem”, ou seja lá o que quer que queiram que Abel pensara que fosse, sem dar um gemido, caiu durinho para trás. Mortinho da silva...
Acreditem: Abel acabara de matar Caim...
A mais triste e desonrosa passagem bíblica acabara de ser reescrita. Infelizmente, de novo, tinha um final infeliz...
Não aquele, bucólico e simples, com a qual a desesperada e infeliz Eva havia sonhado a vida inteira...
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