CONTORNOS
 
     Os contornos, e também o centro, não pareciam bem, nem tão pouco apaladavam mais alguma fome dos olhos ou alguma tênue ânsia restante que habitava aquele cadáver andante pelas avenidas, com seus desfigurados semblantes ocultos. O ser-aqui tornou-se apenas um sussurro angustiante, quase inaudível a si mesmo, naquela imensidade contida na perene fibra de um estar em um ponto desconhecido, de onde se avistavam mitos passantes e fraquejados pelo cansaço de lutas contra suas próprias naturezas perenes.

     No vazio em que se assentou a esperança de morrer, não foi possível esquecer, por mais que se me fizesse em mutilações dilacerantes, os utópicos sonhos prometidos e irrealizados; o tempo de caminhada por entre sóis consumidores ou por entre sombras secretas, trancafiadas num abismo invisível; os magníficos jantares servidos em banquetes tantas vezes frequentados onde se consumia, muito mais a si mesmo, com cheiros, sabores e sonhos estranhos para, depois, vomitá-los no berço preferido, de acordes sempre imperfeitos onde se deitava a violadora de almas.

     Na marejo de um rio ressequido, quase exangue em seu veio, que teimava esgotar-se por entre a nevasca intensa, homens, mulheres, demais seres bizarros vivos ou mortos,  e ela se abrigavam em células, por breve avivadas com alguma pálida chama ou com algum resquício de pensamento insosso, condenados a uma tênue esperança ainda mais fria do que o gélido habitado na tempestade que se dissolvia sobre seu próprio peso.

     De fora do âmbito todo, sem que eu pudesse pressentir sua origem, ressoavam pelo ar, sofismamente – em conspirações entre a mulher de negro esplendor e seu ego, transfigurado em velhos amantes desmentidos, sem que nem uns, nem outros tivessem a exata noção de que ela e o monstro com quem andou por veredas desvastadoras, adentrariam uma noite ainda mais escura no apartamento de si próprios – a exata definição da grande nevasca que teimava soprar com seus rancores obscuros sobre toda a parte. 

     Nuvens longíquas carregavam, por detrás de sua nobre aparência alva, melodias indecifráveis do cativo dos novos amantes, antes por ela mesma ultrajados, que me concebiam uma verdade solidificada através de indefinidas ondas sonoras, sentidas em todo meu ser, em contorces esplendorosos, desnudados em impossibilidades de ocultar-me em esconderijos e atuações que pudessem alimentar alguma incerteza qualquer que aliviasse em um pouco a sombra restante que pairava assolando por todos os horizontes.

     Flores. Amores. Dores. Angústias. Sonhos solitários. E pedaços de ardores azuis. 

     A outro tempo de ventos desordenados que a tudo confundiam e, em mim, colidiam-se, enquanto, ente si, nevada e fugitiva se pressentiam e dividiam, na torrente de imagens mortais, a natural imperfeição das atuações entre as coisas e os seres do mundo, alicerçando-se os muros sólidos de uma incontinência devastadora, havia um corpo prostrado sobre um leito diferente, com suas grades gélidas de ferro frio e macabro. Antes fosse o meu. Havia um corpo deitado por tanto tempo nesse berço de dor que se foi indo a esperança de algo qualquer, enquanto uma chaga terrível carcominha em palidez toda aquela exuberância pura. 

     Sim. Havia um corpo deitando num leito que em tudo se diferenciava daquele de outrora, em cujo veio a fonte foi tantas vezes abrigada em meio aos carinhos e cuidados pelo ser que lutava por um respirar cada vez mais dificultoso, diante de uma dor que lhe dilacerava mais que o corpo combalido.

     Em redor do leito e por todo o cenário, o cheiro era nauseantemente estranho:  flores mortas, pessoas mortas, sonhos mortos. Por entre os corredores daquela imensa casa, caminhavam seres com suas vestes brancas, que mais pareciam anjos enviados por um Criador de esperanças, também mortas. De suas bocas eram proferidas palavras com um poder que assombrava: delas, em invocação de um deus falido, seria anunciado o açoite severo liberando um despudorado represado por detrás de todas as máscaras, em alívios dos semblantes de vultos desfigurados. 

     Em posição de sentido, o sentinela se mantinha plantado, não obstante fatalmente atingido em seu mundo agora paralisado diante da visão e da constância da dor de sua amada de toda uma vida.  Em posição de sentido, o sentinela visionário não mais podia possuir sequer um mundo imaginário que lhe pudesse abrigar em sua norturna palidez. Em posição de sentido, o sentinela ousou anunciar sua dor ao filho ausente:

     - Acho que não vai ter jeito, não! 

     Guardo comigo o mais triste de todos os meus cantos, sem poder me tombar para algum alívio qualquer.

     Madrugou. Acordaram-me do sono e silêncio palavreado, quando eu tentava fugir de retalhos de tempo irrecuperáveis em caminhos que continham nada mais que uma gosma de vômitos de sonhos e ânsias espatifados contra a grande parede. Em dilúvios abrasadores, cada um pega seu bote e lasca o outro na tormenta culposa da infâmia, sem nem se darem conta de que o frio, falsificado em purezas e crenças de si mesmos, é fundamental à vida que apregoam. Ao fundo, vivem de quedas negadas, e tais quedas alimentam o ego como o ego às quedas, em ciclo mortal que sucede até o esquecimento.

     Perdera, na memória, algo que me vem agora nas avenidas desertas e na grande nevasca com seus fantasmas todos: O casebre escondido em um canto qualquer com seus pomares e suas flores, cheirava a fumo das baforaras de um cigarro de palha. Um corpo casando, sentando em uma cadeira de balanço, olhava adiante como se nada houvesse a ser visto. Paralisado. Talvez pensativo. Talvez esquecido ou semimorto. O silêncio era desafiador, perante o que havia de onde eu vinha, onde holofotes iluminavam palavras cegas – magnificamente sedutoras – que me devoravam, enquanto naquele silêncio se persuavam integridades de flagrantes delitos.

     O choque foi violento quando percebi que futilidades às avessas e sentimentos incontrolados invadiriam qualquer sanidade e se infiltrariam por toda a vida em âmagos de almas que figuravam e viriam a figurar suas nudezes, tantas vezes escondidas.  

     Um mundo imenso partindo. Um mundo imenso nascendo. Dois amigos. A um o alívio próximo. A outro a tormenta duradoura. Os céus todos haveriam de se tornarem cinza. As folhas de todas as árvores sonhadas haveriam de cair. As belas sinfonias haveriam de se silenciar. As sensuais imagens de todas as donas, esmagadoramente desejadas, haveriam de se congelar, mediante a dor da travessia de tantos tempos e de tantas veredas incertas.

     Um dia nascia para enfrentar uma imensidade. Um dia morria após ter vivido uma imensidade, mas não sem antes sacudir poeiras de tantas terras visitadas e esgotejar águas de tantos mares navegados, como que adivinhasse o pensamento do pequeno ser que se sentou a seu lado. 

     - Não aprisione o mundo nem nenhuma imagem dele. São falsas. Dar-te-ão tanto que te confundirá ao extremo a visão e te assolará em dor. Antes, aprisione-se em si mesmo. E seja suas próprias chaves.

     O sol se punha e a noite escura crescia diante de meus olhos. Os mares misteriosos me esperavam. Haveria de não os navegar mas caminhar por sobre suas águas. Haveria de não permitir que suas ondas me acariciassem, mas que eu as sentisse em seus contornos. Haveria de não andar como os que vi de onde houvera vindo, mas de voar e de me quedar dos voos em sonhos renascentes.

     Pela janela, nos últimos suspiros do entardecer, um homem contemplava a morte; o outro, a fatalidade da vida: Nuvens se iam desenhando magnificamente toda a abóbada em direção ao horizonte. Nuvens distantes, pálidas e sombrias, haveriam de vir de todos os horizontes desconhecidos.

     Péricles Alves de Oliveira


 
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 17/01/2013
Reeditado em 15/07/2013
Código do texto: T4090361
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