INCONTINÊNCIAS ALVAS
 
     Houve em um tempo indesejado em que o vento, em brisa ou tempestade, não foi capaz de levar a algum esquecimento piedoso. Um tempo em que dois seres de tudo compartilharam enganadamente: por detrás da frágil luz daquele sol de inverno, viu-se um fogo suave que adentrava, aos poucos, com sua claridade única, os recantos ainda não iluminados dos amantes que ousaram se enfrentar em olhares distantes e horizontais. 

     Não tardou a perceberem que haveriam de caminhar entre grandes pedras mortais do mundo; menores, entretanto, das que havia nas mentes que se mostraram incapazes de sair pela porta semiaberta da imensa prisão de si próprios.  Homens e deuses seriam confrontados com a certeza da impiedosa derrota e da autocanibalização pela angústia e  dor.

     Por veredas desconhecidas, por tempos inimagináveis, por sombras indizíveis, o caminho foi percorrido insobreamente.  Se houvesse um pior flagelo, não saberia dizê-lo: se brancas nuvens a pintarem em imagens estranhas o azul irreconhecido do céu, ou se crenças purificadas a lamberem das almas próprias, encharcando-as de ego e de uma estranhíssima sensação de perigo tantas vezes sonorizada em melodias macabras ou em vômitos insanos de homem e mulher transformando-se em monstros, à esteira do poder nefasto de palavras contendo venenos que, cada vez mais, entorpeciam e brutalizavam no cansaço dos anseios inatingíveis. 

     Vimo-nos por entre jardins perfumados com suas rosas tão magníficas que nos estremeceram os sentidos, expurgando-nos de nossa carne em insanidades assassinas, das quais nos tornamos cativos. Os afagos de sonhos sobredouros do reino pretensioso conduziram, em passos apressados, a mares onde o veleiro navegou à nau.

     Em outras vezes ao avistar, da tempestuosidade do oceano onírico, bravio, montanhas a se ofertarem com suas matas, seus cheiros e seus sabores desconhecidos, ansiamos por alívios impossíveis, devastando a terra e destroçando os montes em cacos de promessas, em busca de alguma gota de ouro cravada em algum ponto qualquer, como alívio do encharque insuportável cravado nas almas.
 
     De meus sonhos poucos sabem: Esplêndida solidão em lutas insanas comigo mesmo, nas águas quânticas dos rios todos, com destroços indizivelmente macabros em suas margens. 

     Certa vez, vi numa avenida passeando com dizeres incerimoniais, uma mulher e seu purificado anseio em casulo decadente. Dos zigue-zagues, vi lágrimas de cristais brancos pela esperança morta já na nascente do diálogo entre ambos. O sabor do pensamento fugidio da fraqueza transformada em algum tipo de libido, que sequer podia ser plenamente ofertada pelo idoso, demonstrava uma queda não respeitada pela bela mulher que, fatalmente, não podia corresponder aos sonhos de ressurreição que havia por detrás da oferta de um ser já combalido. E percebi que os pedaços de sonhos já passados e concentrados na tentativa de recuperação entre aqueles seres não seriam suficientes para se construir um relicário salvador. 

     Ao mesmo tempo, de uma luta deserta mais contra mim mesmo do que contra a senhora que indignamente imaginava minha, e amava de tal modo que me insanava em imagens mortíferas a ela cuspidas em descontrole – e , em mim, suicidas em dor dilacerante – tentei montar relicários com também sonhos outros, em ruelas passageiras onde assentei meu travesseiro para um breve sono onde pudesse descansar minhas feridas chagadas, já sabendo que rejeitaria, após o adormecer, os beijos em minha fria face, provocando lágrimas obscurecidas em retalhos de tempos plantados nos corações das vítimas indefesas. 

     Foi num sôfrego de promessas de paz, diante da absoluta incompreensão de nossas fraquezas egocêntricas a engolir vindouros, que o canto se tornou mais triste; e a solidão em meio a flores, montes e quaisquer recônditos já vividos, mais nua. E, teimosos, amantes únicos, com roupas estranhas nos armários de estranhos seres, protestamos atuações cativas, entre o vazio do buscar e as lembranças imperenes da morte inegociável.
 
     Choveu o mundo acordes em tons que me alamaram. Ela amou a melodia suave que soava aos seus ouvidos. Chovi. Torrencialmente. Odiei as sinfonias todas. A noite se prolongou ao dia, engolindo-o com suas sombras e trazendo-me o cheiro do velório meu.  De repente, não mais pude me tatear.  De repente, não pude mais me sentir. De repente, só a podia sentir e, através dela, a dor do que não pude ofertar. E em chuva, devaneei como o menino que outrora se sentou sob aquele poste que palidamente iluminava uma rua de cascalho deserta, sem compreender coisa qualquer. Aquele aglomerado de seres tentando acimentá-la, deixou somente um monstro em vômitos de entranhas venenosas, às quais ela não podia suportar. 

     Ao tomar seu café costumeiro, viu-nos ela num pequeno corpo de um objeto, como que a surgir de uma união que não pudesse ser desfeita nem pelo mais belo e insistente ser, de qualquer lugar e tempo que surgisse; e nem pelas mais belas imagens do que já foram ou pudessem vir a serem criadas:  Ao lado, soerguida e bela, tentava alimentar uma águia ferida, pousada sobre um coração frágil e mutilado fincado sobre o gelo, num deserto inabitado. De seu coração, ligava-se ao meu um riacho que mantinha um veio onde tantas vezes se depositaram lixos poluidores e um amor tantas vezes incompreendido, em uma mistura hedionda. 

     Num súbito, ela percebeu meus contorces de dor nunca sentida, numa tentativa de suportar a grande nevasca fria e insolente. Estendeu a mão, em meio a disparos em seu rosto, ofertou um amor fraternal, e uma busca conjunta do que não podia mais dar nem receber, esquecendo-se de tuas insóbrias imagens plantadas. A águia envenenada haveria de cortar o veio e partir só, sob latidos insanos e apragoantes de ambos. 

     Nunca soube, de seu cativo tingido de pureza, que uma vida ali lhe pertenceu por um espaço de tempo, bem além do limbo escultural de concretos que se firmaram entre chuvas de fogo. 

     Nunca soube, de seu cativo tingido de pureza,  que a harmonia das coisas em seus ouvidos e das cores em seus olhos, foram-me um arroto gigante e ensurdecedor que corroeu o coração onde me pousava.

     Nunca soube, de seu cativo tingido de pureza, que seus cafés e suas estadas fora da grande nevasca, formaram uma atuação falseada em imagens luxuriosas e infames aos demais contracenantes – e deles nunca dadas a conhecer – e provocaram  uma morte lenta e eterna.

     Nunca soube, de seu cativo tingido de pureza, que a fome de dar fôlego a monstros adormecidos, humilhados e atacados todos, por ela mesma, perante mim, em palavras que lhe dava uma falsa luz, foi nada mais que reflexo de si mesma do que o que projetava em mim. 

     Nunca soube, de seu cativo tingido de pureza, que, em espaços infindos e estranhos, além, bem além do que pudemos ver, eu só quis transportar por aquele veio o suficiente para a morte envenenada pelo lixo espalhado.

     ...

     Implacável o inconcebível que invadia os corações, através da dominação da mente egocêntrica e freudiana. Quando mais subiam as águas das tempestades, com seus barros de tantos lugares e de tantos tempos, mais se permitia o não toque à terra com as mãos já calejadas e, em redor, mais vociferava a crença num Deus, cravado na amarela vastidão da desgraça plantada entre ambos.

     Seria esperado o fim do mundo ou o acometimento em sono eterno do fim de um universo sombrio tão arraigado e violador, que transformava, em segundos, toda piedade ou entendimento em ira e rancor?

     Em breve, o monstro teria de assumir a responsabilidade pelo golpe fatal, isentando-a de suas monstruosidades translucidamente demonstradas, e deixando-a voar  – vitimada de tal forma que a condenação não mais pertencesse a ambos, mas somente a ele – entre a brisa e a aliviosidade, com suas vestes alvas a esconderem seu negro esplendor.

     Em breve, tudo estaria acabado e a nevasca teria seu tempo de se congelar nas dores e remorsos por violações trocadas e necessárias à fatalidade.

     Efêmero. Efemeridades. Agigantadas entre ambos. Silenciosas dos espíritos. Congelantes das almas fracas. Sinfonias que confundiram.  Anseios impossíveis. E loucuras que devastaram uma terra.

     Em nome do que me restar de bom ou do todo ruim que me habita, confirmo. Sim. Confirmo que calquei meus pés em firmes prantos teus, por onde nunca antes andaste; que violei tua sublimidade em um caso perdido; e que, com meu coração frio, ofertei-te uma espada afiada que te mutilou em tua alva nudez exposta, expondo seus semblantes mais sombrios e tua alma encharcada, que tantas vezes tentaste manter sob o manto de uma pureza jamais alcançada.  

     Em meios às essências que espraiam em raios indiscretos, intrusos e difusos, adentro a mata fechada, onde não veja tua face tantas vezes açoitada, nem me sirva de teus vômitos magníficos e condenatórios de todos. E nos delírios das sombras da noite acima, sem mais raios de alvoreceres, posto-me em estátua embalsamada por um manto eterno, de onde mais não te possa ver, nem por ti ser visto.

     Péricles Alves de oliveira
Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent)
Enviado por Péricles Alves de Oliveira (Thor Menkent) em 17/01/2013
Reeditado em 15/07/2013
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