Um conto sobre você
Você está no seu trabalho, vivendo e cumprindo religiosamente a sua rotina. Cumprimentando seus colegas, assinando papéis, sorrindo e sendo feliz. Religiosamente.
Você chega em casa e está pensando em como sua vida é medíocre, em como você é sozinho, infeliz, deslocado e em como aquela gostosa que esbarrou em você na portaria poderia te dar. Você janta aquela comida de sempre que pede no restaurante do hotel em que mora, na sua suíte de luxo. Daí você se prepara para dormir e não consegue. Sua cabeça não pára, se sente incomodado, quer fazer outra coisa e fugir dos seus pensamentos, da sua própria prisão. Você fica ali deitado, o relógio já marca 1, 2, 3 da manhã. Você se levanta e decide ligar o computador atrás de uma conversa, qualquer coisa que te livre das grades. Você entra numa sala de bate-papo. Você sempre achou medíocres os frequentadores de salas de bate papo, mas você se rende e quer ser um medíocre livre de sua prisão. Uma pessoa te chama, vocês conversam. Você, pela carência e pelo momento, acaba achando a pessoa interessante. Vocês marcam um encontro para o outro dia, às 19h. Você pela primeira vez em quase 20 anos, se sente feliz e ansioso por algo. Igual a quando você tinha 6 anos e achava o seu pai o homem mais inteligente do mundo. A sua mãe, a mais bonita e feliz das criaturas. Até descobrir que seu pai não chega tarde todas as noites porque trabalha muito. Até descobrir que ele tem taras por ninfetas. Afinal sua mãe já não está mais tão apertadinha, jovial. E a sua mãe sabe disso. Sabe que não é mais tão apertadinha e que seu pai a trai. Ela aceita essa condição. Por comodismo, carência ou incompetência, talvez. Ela já não é tão bonita. Nem feliz.
Igual a quando você sentia aquela sensação de ansiedade toda noite 24, véspera de natal, visita do papai-noel. Igual a quando você se achava uma criança especial e acreditava que iria crescer e ser feliz. Até descobrir que o Papai Noel é o seu pai, que paga pra comer ninfetas que tem a idade de sua irmã mais nova. Que perde o seu cargo pra jovens mais inteligentes e capacitados que ele. Até descobrir também que você cresceu, mas não é especial.
Já são 7 horas, dentro de uma hora você vai ter de estar no seu trabalho, assinar papéis, cumprimentar os seus colegas e ser feliz. Hoje talvez você seja um pouco mais feliz que de costume. Você faz o mesmo percurso de sempre no seu carro do ano, com ar condicionado, bancos de couro e cheiro de novo. Cumprimenta seus colegas, assina papéis. Você vai para a dinâmica, sua amiga, aquela da sala ao lado que você cumprimenta todos os dias sorrindo. Ela comenta que você hoje parece mais feliz. Que está surpresa, e não queria te dizer isso porque poderia soar um pouco invasivo, mas ela sempre notara o quanto você era triste, e quanto você sorria amarelo. E que está gostando de conhecer o seu novo “EU”. Você se sente confuso, mas se sente melhor sendo uma pessoa antes triste, agora feliz, segundo a sua colega da sala ao lado.
Você sai do trabalho, vai para sua casa, se arruma, põe a sua melhor camisa. Não que todas as suas camisas não fossem as melhores, mas você escolhe a que parece melhor para um encontro. Usa seu perfume “irresistível”, faz a barba, escova os dentes com um cuidado não usual, apara os pêlos pubianos e prepara algumas piadas e comentários inteligentes de frente ao espelho. Eles são úteis quando se vai ter um encontro, você sabe exatamente o que dizer quando ambos ficarem em silêncio. O relógio marca 18h, e você está ansioso. Começa a imaginar como seria aquela mulher de alta, esguia, cabelos médios, castanho claro e ondulados. Começa a fantasiar qual seria a cor dos mamilos dessa mulher tão segura, engraçada e bonita. Segundo ela mesma descreveu. Você tem uma ereção e percebe que já se passaram 15 minutos. Você corre, não quer chegar atrasado.
Você chega, e a mulher alta, esguia e com cabelos claros e ondulados, não é tão alta assim, nem tão esguia, talvez a blusa com dois números a mais e de cor berrante não ajude. O seu cabelo não é tão macio, brilhante e volumoso como você imaginara. E ela nem é tão engraçada pessoalmente, talvez se estivesse menos nervosa seria, mas não. Ela está visivelmente nervosa, e por incrível que pareça, mais do que você. Você tenta ignorar esses detalhes, está ciente que houve idealização e também tenta a todo custo não notar as várias marcas de espinhas que tinham em sua pele.
Vocês jantam, saem e transam. No outro dia você falta o trabalho, se dá um dia de folga. Você liga praquele número anotado no guardanapo do motel, dá número inexistente. Você tenta mais uma vez, e mais uma vez o número não existe. Você conclui que ela te deu o número errado. Você conclui que talvez ela não tenha gostado da foda, ou talvez você não fosse tão alto quanto havia comentado em caracteres naquela sala de bate-papo. Seu dia de folga acaba sendo um dia de auto-avaliações. Então você se convence de que realmente não é tão alto assim, e que ela era feia, gorda e mal vestida. Mas ainda assim você não está bem.
Você chega ao trabalho no outro dia, sorri para aquela sua colega tentando ser o mais convincente possível, talvez ela te diga hoje o quanto você é mais feliz.
Ela não diz nada.
Você então conclui que não é mais feliz, é tão triste quanto era até o dia que a colega te disse que você estava mais feliz.
Você então volta pra casa, janta e dorme. No outro dia você acorda, mais cedo que o usual, e veste a sua outra melhor camisa. Não aquela melhor camisa para um encontro, você veste a melhor camisa para um dia de trabalho. Você entra em seu carro, faz o mesmo percurso, cumprimenta seus colegas, cumprimenta a colega-da-sala-ao-lado e faz um comentário como sobre o tempo está seco. Ela apenas responde um “é, verdade, será que chove?” Você então responde “Tomara”.
Você fica ansioso para a dinâmica semanal, você quer ser feliz logo quer que ela note o quanto você é mais feliz.
Ela não comenta nada, mas puxa um assunto. Talvez isso seja algo que pessoas felizes façam. Você tenta se mostrar interessado no quanto a cidade expandiu, no quanto a violência aumentou, ou no quanto as pessoas estão cada vez mais individualistas. Você concorda, e responde “Que bom”. Ela te olha assustada, talvez “que bom” não seria a resposta ideal. Então você começa a pensar enquanto a sua colega-amiga-da-sala-ao-lado fala sobre plantas. Você pensa num modo interessante de tirar a própria vida. De um modo poético, talvez. A sua amiga fala sobre viagens. Você pensa em que carro vai a toda velocidade em direção a um penhasco, e não freia. Ela fala de comida. Você pensa numa morte por asfixia. Ela então fala sobre coisas interessantes para se fazer num sábado à noite com vinho, boa comida e um bom papo. Ela fala demais. E você pensa numa morte em que o sujeito tem a sua língua cortada introduzida no seu próprio ânus.
A dinâmica acaba. O seu dia de trabalho também. E você janta, dorme, acorda, veste a sua melhor camisa, e decide finalmente transformar sua felicidade em algo eterno.
Uma semana depois te encontram. E a sua foto estampa a capa de um jornal medíocre do bairro.
O que dizem sobre você é mentira.
Você não era um cara “Que trabalhava demais, não tinha namoradas, nem amigos. E aparentemente solitário”.
Solicitam a chave reserva de seu apartamento na administração do luxuoso hotel em que você dorme e acorda. Não a sua namorada, e nem os seus amigos. Pois você não os tem.
O pessoal do trabalho sentiu falta das suas assinaturas. E finalmente de você.
Sentado em uma cadeira com um rasgo cuidadosamente talhado e modelado com linha e agulha de costura sob a face, eles te encontram.
Só as larvas, mosquitos e baratas acreditariam no quão feliz você foi.
A pele, agora pendurada e putrefata, exibe permanentemente um sorriso.
Meio de lado. Meio Amarelo.
O seu sorriso.