O anjo tosco

ANJO TOSCO

No limite onde termina o universo, fora da jurisdição divina, onde começa os anti lugares insólitos, decadentes e inexistentes à razão humana, não há tempo, espaço nem circunstâncias que sobreviveriam.

Fora do espaço, fora do tempo, sobre um impregnado chão escorregadio ele se arrasta. Chão? Ainda bem que escorrega na gosma viscosa do limbo; senão, o que mais seria? Sobre a sua cabeça, um céu no qual não se vê estrelas nem luas, na verdade nem céu, pois, se ninguém nunca viu, não existiu. Para todos os lados, pura escuridão, tão espessa e palpável que nenhuma luz é capaz e rasgá-la, bate no peito feito vento forte; não é da vida nem da morte é algo que, miseravelmente se sente, porém, não se define. Parece que sobre os seus ombros, uma cruz pressiona um calombo, rasgando o ectoplasma sem piedade; se fosse carne seria viva; uma asa atrofiada se debate.

Era, por ventura, para ser um anjo? Talvez, mas não se pode afirmar que seria simplesmente uma cruz nas suas costas; ali nada tem forma, pode ser qualquer coisa que condene, mas nunca se contorna em serenidade ou perdão. A dor não é dor de carne, não é câncer, tampouco peia... É a ausência do sentido da própria dor. Nietzsche afirmou: “O que revolta no sofrimento, não é o sofrimento em si, mas a falta de sentido; nem para o cristão que interpretou o sofrimento, introduzindo-lhe todo um mecanismo secreto de salvação, nem para o ingênuo das eras antigas, que explicava todo sofrimento em consideração a espectadores ou a seus causadores, existia tal sofrimento sem sentido”.

“Que saudade teria o não ser, caso fosse; do som de música ruim, do silêncio significante que implodisse os seus tímpanos, ou de qualquer outra coisa que signifique ou que atrapalhe, que ajude, estorve, corrompa, perdoe, que adoeça ou que sare; que esqueça, que ampare, que lembre, que exalte ou humilhe.” Porém, Nada. Nada é tão absolutamente nada que não se possa sentir ou sonhar como ali o é. Não é possível...

-Preciso da presença de alguma coisa que se mexa, que aqueça ou esfrie... Que espaço recôndito e inigualável! Inexpugnável à própria razão! Lugar donde não se sai não se entra, não se fica, tampouco dele se ausenta.

De repente! Ah... Isso acontece de vês em quando: uma trégua; uma luz, um pensamento; lembranças claras como um véu de noiva; até parece que tudo vai significar; que era um sonho, mesmo que medonho de se sonhar. Uma consciência exposta, fora da mente, em posição indefesa e frágil, mas que a única grandeza que tem é não se ressentir com o que sente, parece resignação compulsória, onde a dor é a semente da solidão ou, simplesmente, a mais perfeita ausência de prazer.

-Uma imagem! Ah! A quanto tempo não vejo uma imagem... Obrigado! Agora sim, pelo menos isso.

Descortinação: Como um rolo de papel que se abre, surge diante da tosca figura a visão da sua mãe que dorme semi-acordada de medo do que possa acontecer ao filho. A luz da rua que era quente e fraca, porém iluminava o cachorrinho magro batendo o rabinho amorfo de sarna; a poça de água podre que dá nojo, um rato morto e fétido infestando um ar que mal da vontade de respirar; o mendigo com uma ferida aberta e mãos nojentas estendidas; a mulher feia, gorda e cheia de varizes, suada, pedindo carinho, jogando beijos nojentos como ela. A criança catarrenta que lambe o que escorre das narinas, que saem como duas cobrinhas infames e repugnantes de dentro do seu nariz rumo à boca.

Os pobres...

-Ah, aí estão os pobres... Que criaturas mais inconvenientes e insolentes! Não prestam nem para ser mendigos; antes fossem, já ficariam longe automaticamente; mas ficam por aí querendo ser gente. Pedem emprego, sabem que são explorados e puxam e repuxam o saco dos ricos. Isso é ridículo.

Desfilam também diante do “não ser” grotesco: as prostitutas, os gays, estupradores, travestis, lésbicas, negros, albinos, deliquentes injantis e juvenis; seqüestradores, ladrões, agiotas, traficantes, drogados, policiais, políticos, pastores evangélicos, padres, freiras, rabinos, catadores de lixo, ricos empresários exploradores da mais valia e todos os conhecidos inimigos da coisa sem forma e vazia.

-Ah, olha aí! Ainda tem aquela menina dizendo que me ama, mas não quer fazer sexo, é até gostosa, mas não vai a bailão; não dá não. Fica usando essas saias caretas, parece que lava o cabelo com sabão de coco! Há! Há! Há! Que idiota! Marmota... Sai pra lá urubu! Raimunda... Não gosta da música da galera; diz que tem “bom gosto; quem é ela para saber mais que eu. Eu?

-O que será que isto significa?

De novo escuridão de sentido assola o não corpo cada vez mais delirante. Mais alguns milhares de pesados passos sobre a gosma insólita, sob uma coisa parecida com escuridão e silêncio, tão absoluta e absurda que sangraria os ouvidos que porventura ouvissem. Mas ali não, não há som nem silêncio, não há textura, rugosidade ou polidez; ali não, não é vida nem morte; não há boa ventura ou falta de sorte. Por que então, vez em quando, reside ali algo semelhante ao pensamento? Loucura... Se nada se pode definir, significar, entrar, permanecer ou sair, para esse deslugar, não há nenhuma razão em existir.

Não existe uma idéia sequer, que se encoraje ou que ouse comungar com a falta da mente; o pensamento vibra descontente; incoerentemente é transladado para o buraco negro da imensidão do dessentido. O tosco anjo se debate debalde, não tem o direito à loucura ou lucidez; um ser que existe e ao mesmo tempo está descartado do existir efetivo; pois não tem espaço, tampouco tempo disponível e as circunstâncias não se cristalizariam em torno de um vazio onde não haja um núcleo de ação. Um vácuo, que não chega ao status de lugar. “Meu Deus!” Opa! Saiu sem querer... O que seria isso? Resquícios do que?

Mais uma fresta que se abre; um débil e fugaz fio de lume. É um “quase sentido” disponível.

-Imagem! Ah, imagem... Obrigado.

Desdobra-se sobre uma cama a imagem de uma velhinha:´

-Vovó! Nossa... Como a senhora está magrinha! O que seria isso?” Iminência da morte, final de jornada terrestre.

Uma voz, não se sabe de onde, pede:

-fica aí, ela pode morrer a qualquer hora hoje.

-Ma... mas hoje tenho prova na faculdade!

-Adia, você pode não vê-la nunca mais.

-Que falta isso me faria, não ver uma velha caduca nunca mais?

Na verdade quero mesmo é ficar para sempre naquele bar em frente à faculdade, cheio de gente nova e bonita e ouvindo a música que “todo mundo gosta”.

Como se fosse um susto, inexplicável e repentinamente, abre-se em visão panorâmica a imagem de uma enorme fila de crianças judias e negras arrastando-se em campos de concentração; tão magrinhas e subnutridas que, mal se movem; a maioria delas se arrasta; as que caminham, caminham decadentes como morto-vivos; todas sôfregas, lesionadas, aquém de maltrapilhas, indo em direção a bolotas pisadas e imundas de arroz mal cozido; atiradas a esmo para a diversão dos algozes que adoram vê-las sofrer.

-Ma... mas... Isso aí foi pura invenção! Eu li num livro; Onde já se viu! Montanhas de gente morta queimando, um cheiro de churrasco no ar; crianças estupradas, imundas e famintas? Com certeza, se aconteceu, é porque não eram tão inocentes... Bem... Mas... O caso é que... Não sei... É...

E toda razão foi sumindo devagar até voltar ao nada que era tudo o que aquele anti-lugar ostentava. Escuridão espessa.

O anjo tosco de asas atrofiadas, sem cor, sem forma e vazio, pela primeira vez se estremece. Ouve uma voz calma e ritmada... Suavemente lhe são outorgados efêmeros segundos de clarividência e razão.

-O que é isso?

Uma mão lhe toca o que parecia ser os ombros e diz lânguida e compassadamente:

-Para a terra... Foi você mesmo quem escolheu seu destino... Terás de aprender a amar tudo aquilo que viste, só então subirás a colina.

-Não! Não! Não! De novo não!” Mas foi. Chorando, esperneando e sangrando.

carlinhos matogrosso
Enviado por carlinhos matogrosso em 27/12/2012
Reeditado em 25/01/2013
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