A NOITE SEGUINTE

Nelson e Yolanda olharam desolados para a casa onde viviam há muito tempo. A decadência era visível. Paredes em frangalho, móveis se desintegrando, utensílios domésticos, àquela altura inúteis, pois nada tinham que pudessem cozinhar. Latas de cerveja e garrafas de outras bebidas coalhavam o chão empoeirado. Naquela manhã comeram as duas bananas que restavam de um cacho que Nelson colhera do pé de bananeira que teimava em resistir no quintal lotado de entulhos. Seria o único alimento que os manteria até a noite seguinte. Na penumbra deitaram-se sobre um lençol puído e entornaram latas e garrafas em busca de mais algum gole. Seus estômagos reclamavam em altos roncos o quanto estavam vazios. Deram-se as mãos e mais uma vez olharam-se. Não havia tristeza naquela troca de olhares; antes, resignação. Dormiram assim pelo que pareceu um longo tempo; tempo durante o qual, em sonhos ou delírios, tripas se retorciam, hordas de pássaros estranhos voavam sem qualquer direção e alguns lagartos tentavam aproximar-se deles; recuaram quando Nelson tentou capturá-los. Pareciam rir deles, os lagartos. Sentiu Yolanda chorar baixinho como se a lamentar a perda daquela possível refeição. Nelson virou-se para o lado e sua perna esquerda tocou levemente um objeto. Abriu um dos olhos, apurou-o e viu tratar-se de um pedaço de madeira que era seguro por alguém vestindo roupa escura e que tinha o rosto coberto por uma espécie de touca a lembrar uma balaclava de piloto de automóveis, também de cor escura. Num gesto automático ele voltou à posição anterior e segurou firme a mão direita de Yolanda que ainda dormia profundamente. A estranha figura estendeu-lhe a mão direita e com a esquerda apontou o pedaço de madeira na direção dos estranhos pássaros. Sentiu que ele e Yolanda flutuavam e repentinamente estavam acomodados entre as asas de uma daquelas aves. As outras a seguiam num séquito rumo à escuridão. Nelson, por pura curiosidade, ainda olhou para baixo. Viu a figura de roupa e balaclava escuras cavalgando um dos lagartos que invadira seu sonho. Num pulo o réptil mergulhou rumo à escuridão do porão que havia nos fundos da casa.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 19/12/2012
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