O CÃO DO MEU AVô
Eu tinha dez anos quando morreu o meu avô Genaro.
Depois que a vò Belinha faleceu, Genaro tornou-se solitário, fechado em seu casulo . Quase não falava e às vezes parecia não me reconhecer quando mamãe, aos domingos, me levava até ele. Continuava a viver naquele casarão de venezianas brancas, muito antigo mas bem cuidado, cujos forros e assoalhos de tabuas corridas, em madeira de lei, tinham sido motivo de orgulho para a família. Com ele morava o Tio Julio, solteirão inveterado, que vivia de seus vencimentos como funcionário estadual.
Todas as manhãs, invariavelmente às oito horas , vovô saia a passear com seu cão Gregório, que, após a morte da vó Belinha mamãe lhe dera de presente , ainda filhote, para distraí-lo e fazer-lhe companhia.
Gregório, então com dez anos de idade, crescera e se tornara um enorme cão policial negro, de pelo luzidio, mas extremamente dócil. Vovô batizou-o com esse nome em homenagem, às avessas, ao guarda-costas de Getulio Vargas, a quem detestava. Com o tempo, o cão converteu-se em amigo, segurança e confidente do vô Genaro.
Quando saia com o cão, Genaro se animava.
Conforme andava, a passos lentos, gesticulava, como se contasse ao amigo alguma história interessante. Às vezes parava, e olhava para o cão, como se ouvisse alguma resposta.
Num desses passeios Genaro sentiu-se mal e caiu.
Foi levado para o hospital e não voltou para casa.
Gregório sumiu.
Bem que meu tio Julio andou por ali tentando achar o cão, mas sem muita vontade, pois, se o encontrasse, teria de tratar dele, com todas as regalias que meu avô lhe dispensava.
Era melhor deixar como estava.
As coisas, porém, nem sempre acontecem como se deseja.
Uma noite, ali por volta das oito horas, tio Julio já chegara do trabalho quando tocam a campainha da casa . Ele atende à porta e se depara com um homem magro, barba por fazer, de aparência cansada e cheirando a mil maços de cigarros fumados.
- Pois não, diz o tio Julio.
- Boa noite meu senhor. Meu nome é Geraldo. Faz tempo que estou andando por aí procurando um parente dum homem que morreu aí na rua. Me falaram que talvez aqui morasse um parente dele.
- Sim, pode ser, disse o tio Julio. E o que é que o senhor deseja?
- Ah, meu senhor. É o cachorro.
Julio sentiu um frio lhe subir pela espinha.
- Que é que tem o cachorro, perguntou.
- É que no dia que o velho morreu, eu vi aquele animal deitado ali junto ao corpo, com o focinho apoiado no peito do coitado, tomando conta dele. Fiquei com muita pena e como ele estava com a coleira e guia, eu o peguei e levei para casa.
- É seu então, disse tio Julio. Fique com ele.
- Não, não. Não posso. Como é mesmo o seu nome?
- Julio.
- Então, seu Julio, eu não posso ficar com aquele cachorro nem mais um dia, e muito menos uma noite, senão vou acabar enlouquecendo.
- Por que? Ele sempre foi um animal muito dócil. Que é que o senhor achou de ruim nele?
- Acontece, seu Julio, que à noite ele vira um inferno. O homem coloca a mão na boca e diz, baixinho, como numa confidência: Ele fala a noite toda!
- Faaala?
- Fala sim senhor! Desde o primeiro dia. Levei um susto dos diabos. Eu tentei abandoná -lo por aí mas ele voltou.
- É o que é que ele diz quando fala, perguntou tio Julio, já com um sorriso maroto no rosto.
- “Me leva pra casa”. “Quero ir pra minha casa”. É isso o que ele diz.
- Ah, seu Geraldo, isso já é safadeza sua. Não quer ficar com o cão não fique, mas não me queira fazer de bobo.
- Não é não seu Julio. Eu vou buscar ele e lhe entregar, porque não agüento mais.
Esse desgraçado tinha de me aparecer logo hoje,pensou o tio Julio.
- Volto daqui a pouco com ele.
Meia hora depois tocam a campainha de novo.
Era Geraldo, com o cão na coleira e guia.
- Toma ele seu Julio. Espero que agora ele fique feliz.
- Oh meu pai, você se foi e me deixou esta bomba. Que é que eu vou fazer com este cachorro?
O cão logo se aboletou no sofá, ocupando a sua maior porção. Ficou ali quietinho, até adormecer.
Com o passar do tempo, tio Julio se afeiçoou ao animal, porque ele era realmente uma grande companhia. Passearam, viajaram juntos, e apesar da idade, Gregório aprendeu ainda muita coisa. E era, antes de tudo, uma segurança, diante da violência das ruas.
Os cães grandes, porém, não tem vida longa e, aos dezesseis anos Gregório dava nítidos sinais de cansaço . Já não se entusiasmava com brincadeiras e nem latia para os pombos que infestavam o telhado do casarão. Foi indo assim, até que chegou o dia de tio Julio ter de correr ao hospital veterinário, carregando aquele enorme animal inerte.
Levaram o cão para uma espécie de U.T.I e pediram a tio Julio que aguardasse na sala de espera.
Pouco depois o médico veterinário entra na sala de espera, lívido, com os olhos esbugalhados e diz a tio Julio; - Ele... é melhor o senhor ir lá...
Tio Julio entrou na U.T.I, aproximou-se do cão e penalizado de vê-lo tão prostrado, desatou um choro convulsivo. O cão levantou um pouco a cabeça e ganiu baixinho. Tio Julio chamou pelo médico veterinário, mas ninguém respondeu. Virou-se para ir até à porta da sala em busca de alguém, quando ouviu, claro e cristalino como o sol que brilhava lá fora:
- Julio, obrigado por tudo.
E depois, o silêncio.