O PRATO E A VELA

Fomos acordados pelos gritos desesperados de uma mulher.

A vila toda acorreu para a lagoa, que em época de cheias, derramava-se pelo campo, tomando o espaço do gado.

Era dezembro, e o Pantanal sul-matogrossense já dava sinais de vazante.

O rio Paraguai baixava suas águas nos barrancos, a alguns metros do vilarejo, que naquela época do ano só se chegava após horas embarcado.

Criança de oito anos em férias escolar, logo reconheci na destemperada a moça feliz que viajara com meu irmão e eu na última embarcação.

Recém-casada, acompanhara o marido que prestava serviço militar naquele rincão isolado, pequena guarnição estratégica do Exército na tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Bolívia.

Ainda não compreendia a alegria que acomete aos casados novos,

mas podia apreender o dor de uma mulher em desespero de perda.

Rodeamos a moça molhada e desconsolada, que entre tremores e soluços, contou-nos terem ao amanhecer decidido banhar nas águas mornas do lago, para minutos depois presenciar, apavorada, o jovem marido afogar-se.

A princípio pensara que ele brincava, disse lamentosa.

Nessa época do ano, lagos brotavam com as enchentes,

e ligavam-se por pequeninos canais entre si,

como se o campo agora expusesse na superfície veias de águas outrora escondidas na estiagem.

Numa mansa de trocas de filetes entre bolsões, o líquido deslizava mansamente de um a outro,

até que o lago mais próximo das margens deitasse o resultado das chuvas no Paraguai,

caudaloso com o que recebia de seus afluentes,

e se avolumava ruidosamente, desde sua cabeceira.

Alguns homens tentaram achar o corpo, mergulhando aqui e acolá,

até que desistiram, cansados pelo insucesso.

Foi quando uma velha índia guaicuru solicitou um prato, fósforos e uma vela.

A pequena população do vilarejo alvoroçou-se, num pasmar mudo e coletivo,

tomada pela curiosidade e ainda com ela assistiu,

num silêncio espesso que até hoje não vi igual,

a velha aquecer a vela e instalá-la no centro do prato.

Acendeu-a e entrou até que os joelhos dessem n´água.

Aos meus olhos de menino, o quadro trazia agora um quê de sobrenatural ou de outro mundo: uma índia semi-imersa, alumiada qual espectro por um lume indeciso de vela, num lago grávido de falecimento enquadrado pelo lusco-fusco da aurora, envolto num silêncio de ensurdecedora expectação .

Deitou calmamente o prato no espelho d´água, e vimo-lo,

com a vela tremulante no centro, deslizar como que empurrado por mãos invisíveis na superfície límpida, ziguezagueando sinistramente,

enquanto todos em expectativa, a respiração suspensa, os olhos orbitados, acompanhávamos um desfecho até ali por nós desconhecido.

Após percorrer uma dezena de metros, o prato misteriosamente parou;

a chama simulou um breve apagar por segundos que pareceu-nos eterno;

foi quando a índia quebrou o silêncio espectral e orientou que mergulhassem naquele determinado local e trouxessem o corpo.

Disse-o numa certeza que me eriçou os cabelos da nuca e os pêlos dos braços.

Ainda hoje me arrepio, passados tantos anos,

ao recordar aquelas cenas..., e me pergunto a que mais me surpreendeu: se o corpo do falecido retirado d´água, se o desespero que se abateu sobre a viúva, ou o misterioso prato com a vela.

As respostas morreram com a velha índia.

Daniel Viveiros®/Jan2006