O suplício das memórias

Como de costume, lá estava a mulher dos cabelos flamejantes e olhos de mar; sentada naquele mesmo pub, no mesmo lugar e com a sua companhia de sempre. Companhia que preenche todo e qualquer vazio, que aquece o corpo e a mente, que traz uma sensação de bem estar infindável – embora tenha um fim; não, não é o amor. É o seu adorável gim. Quando a felicidade aparente do álcool se esvai, toda melancolia que ousa tomá-la, simplesmente o faz. Gim, o seu companheiro de sempre. O único que nunca partiu, que nunca a deixou para trás.

Tudo que havia no pub a encantava. A iluminação baixa e romântica do ambiente, as mesas e o balcão de madeira, algumas luzes coloridas espalhadas pelo interior do bar, as bandas ao vivo, a fumaça que vivia pairando ali dentro... No entanto, o que mais a agradava, o maior motivo para frequentar aquele local todas as noites, era uma simples e velha jukebox – aquelas máquinas do tipo em que as pessoas podem escolher as canções.

Após o show ao vivo ela se dirigia àquela pré-histórica máquina; escolhia sempre a mesma canção. Dedicava inúmeras vezes ao seu amado que partira, sem dúvidas para um lugar melhor. ‘Love & a 40 oz.’, é a musica que eles costumavam ouvir e cantar na varanda de casa junto à sua filha – com cabelos tão flamejantes quanto o dela. Há cinco anos, quando a mãe fazia compras, a casa incendiou-se. Perdeu tudo o que tinha por um descuido no botijão de gás... Seu marido e sua pequena filha queimaram junto à sua casa. Imagine perder tudo o que possui além do material, sua família; não há nada mais pessoal e trágico que isso.

Desde então ela passa as noites nesse velho bar, nessa pequena cidade, presa a uma culpa sem ser culpada de nada. Esqueceu-se no passado, junto às cinzas dos seus amados.

Naquela noite ela estava ansiosa para colocar a música na velha máquina. Entre doses e mais doses de gim, sua saudade só fazia aumentar e seus olhos de mar lacrimejar. O que supostamente deveria ser divertido tornava-se um martírio, tornava-se um momento cheio de tudo e cheio de nada. Assim, vagarosamente em suas doses de gim ela se afogava.

Sua visão já estava completamente turva. Perdera a conta de quantas doses havia bebido, fora a água salobra que escorria de seus olhos. Enfim o show ao vivo terminara. Andou apressada para chegar logo à jukebox; não se importou de tropeçar e esbarrar na mesa dos outros – provavelmente já estavam todos tão bêbados quanto ela, este era o bar dos “acabados”.

Quando sua música começou a propagar por todo o bar, o seu sorriso saiu. Relembrou dos momentos com sua família; relembrou do amor inimaginável que tivera, relembrou da criança mais linda que um dia seus olhos ousaram enxergar. Ficou lá ao lado da velha máquina, dançando lentamente com o seu copo cheio na mão... Copo cheio, mente cheia, coração e alma vazios.

Algo diferente acontecia naquele momento, no entanto ela estava tão embriagada – de álcool e saudade – que não notara a fumaça se espalhando rapidamente pelo bar. Algumas mãos seguravam-na e tentavam arrastá-la, mas ela se desvencilhava de todas. Tudo o que queria era ficar ouvindo àquela canção... O fogo espalhava-se pelo local; ela sem se importar, apenas bebia do seu companheiro; degustava cada pequeno detalhe daquele gosto, cada ínfimo sabor escondido.

A fumaça apossara-se do bar. Não se enxergava um metro adiante sequer. Devido a nevoa que se formara e que se acumulava cada vez mais, não aguentou inalar tanta fumaça, o que a fez cair inconsciente no bar em chamas. Caiu sobre o chão de bebidas, inclusive a sua, que derramara por todo o seu corpo. Um bom amigo fica presente até o fim, se preciso ajuda diminuir a dor, mesmo que de uma forma cruel; seu gim, só facilitaria o trabalho das chamas.

O fogo aproximou-se dos cabelos flamejantes, até tomá-lo, até tomá-lo por inteiro. A música continuava a tocar, enquanto seu corpo queimava, enquanto seu corpo virava apenas cinzas. Junto com ela ia a canção, única testemunha de um fatídico momento, e claro, ia também a antiga jukebox. Seus olhos de mar já estavam doces, seu corpo em breve tornar-se-ia somente pó; estaria no caminho para encontrar sua família.

Sua culpa, sua dor, sua saudade e principalmente o seu amor inimaginável, fizeram-na permanecer dentro daquele antigo pub de madeira; junto a uma antiga máquina, ouvindo sua canção predileta... Pela primeira vez em muitos anos, ela finalmente encontraria a paz e o amor que há muito procurava. Pela primeira vez na vida, seu corpo estaria tão flamejante quanto o seu lindo e chamejante cabelo.

Larissa Maciel
Enviado por Larissa Maciel em 17/11/2012
Reeditado em 22/03/2013
Código do texto: T3990745
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