Antônio Alcoólatra Anônimo e Suicida
Antônio Alcoólatra Anônimo e Suicida. Esse não era o meu nome. Com as iniciais do meu nome de batismo, A A A S, Antônio Alcântara de Assis e Silva, eu fiz, para mim, esse outro nome. É mais apropriado agora.
Agora são cerca de onze horas, e o sol está bem quente. É uma bela manhã de verão. Nesse momento eu estou assentado sobre a parte mais alta de um dos grandes arcos laterais do viaduto de Santa Tereza, bem à beira, com as pernas penduradas, balançando livres.
Muitas pessoas já se aglomeraram ao redor para assistirem ao show da vida e da morte. Algumas pessoas pensam que eu só quero chamar a atenção; algumas outras acham que eu vou suicidar, lançando-me daqui de cima para me matar. Ambas estão erradas.
Aquelas que pensam que eu só quero chamar a atenção estão erradas porque eu quero também chamar muito a atenção de todos; porque um homem, idealista como eu sempre fui, não poderia morrer anonimamente em algum canto desse mundo, em algum beco sórdido e escuro ou sarjeta imunda. Eu não poderia morrer de noite, sozinho sem ninguém ver.
As outras que pensam que vou me matar atirando-me daqui de cima também estão erradas, porque elas não sabem que eu já morri há muito tempo. O que restou de mim é apenas um zumbi que, muitas vezes iludido, pensava estar vivo. Estou tão morto que sinto em mim o cheiro da morte, o qual se mistura ao odor fétido do meu cadáver em avançado processo de putrefação. Sinto os vermes se revolvendo alegremente em minhas entranhas, se alimentando de mim. Eles comem a carnes de uma pessoa, mas continuam sendo vermes. Isso que dizer que eles não vão se tornar pessoas, mas eu, pouco a pouco vou me tornando um verme. Talvez, há muito tempo que sou apenas um verme; equivocado, pensava ser gente.
Eu não morri de uma vez, nem me tornei alcoólatra da noite para o dia. A verdade é que eu decidi me tornar um ébrio. Um dia tomei a decisão de me embriagar, daí pra cá nunca mais parei. Esse foi apenas um passo inevitável no lento processo de degradação pelo qual muitos seres humanos passam.
Tornar-me um ébrio foi um ato de grande coragem; enquanto muitos outros pensam, em seus patéticos e legalistas julgamentos que foi um ato de extrema covardia. Os ébrios apenas escolhem lutar com outras armas. Eu escolhi essa.
Eu nunca tive experiência em beber. Foi uma dificuldade muito grande iniciar nesse caminho. Eu nunca tive amigos de botequim e nunca frequentei bares; sempre odiei esse ambiente. Mas isso nem era necessário. Eu comecei tomando cervejas em lata, depois vinho ordinário, até chegar às bebidas destiladas, cachaça, na realidade.
O primeiro dia que cheguei à minha casa, bêbado, foi um caos. Nunca ninguém me viu assim. Minha mulher não mudou em nada o seu comportamento comigo; pelo contrário, tornou-se ainda mais agressiva. Achou que além de irresponsável eu também começava a fazer gracinhas. O meu filho mais velho, agora de vinte anos, se alienou com a minha atitude. A minha filha do meio, de dezoito anos, se indignou, passando a me praguejar. O meu filho mais novo, esse me abraçou com carinho e conversou comigo, tentando me convencer de que esse não era o melhor caminho para fugir das crises. Ele ficou muito tempo comigo, esperando que eu melhorasse do meu estado. Por causa de todos os meus filhos eu sofri, mas principalmente por esse.
Para poupar esse meu filho do sofrimento de me ver embriagado, passei a ficar na rua. No começo, eu ainda vinha para casa todos os dias, lá pela madrugada, quando todos já estavam dormindo. Eu passei a dormir em um quarto de despejo, separado da casa, no fundo do quintal. Depois, passei a ficar dois, três, quatro e até cinco dias na rua, entre os mendigos, bebendo.
Não me embaraça
Pedir uma cachaça,
A qualquer um que passa.
Antes desse estado, eu que já enfrentava graves crises, financeira e de desemprego. Aceitei um trabalho de vigia noturno na obra de um prédio. Eu saía de lá pela manhã e ficava na rua, bebendo e me embriagando. Eu precisava daquilo. À noite eu voltava para a obra e ficava lá, tomando conta de tudo. “Você é inteligente, pode conseguir coisa melhor, está desperdiçado aqui!” Era o que me diziam. Mas eles estavam errados. Aquilo era o melhor que eu ainda conseguia fazer, e era muito. Para que ficar me iludindo com os meus sonhos e planos? Ninguém mais acreditava em meus sonhos e planos, até eu mesmo não acreditava mais em mim.
Não foi sempre assim. Tudo começa com a mãe ou com a esposa. Quem não se desacerta com a mãe, acaba se desacertando com a esposa. Esta então, quando é desequilibrada, consegue ser pior que uma mãe desequilibrada, destruindo de vez com a auto-estima da pobre alma.
Mas também não foi sempre assim. Tudo começa com a falta de dinheiro, o vil metal. Quando o dinheiro começa a ficar escasso; quando a dispensa e a geladeira começam a ter certas privações; quando o cardápio começa a emagrecer, o que nem sempre acontece às pessoas; nessa fatídica hora começa a faltar harmonia, carinho e compreensão. Aquele amor cantarolado pelos apaixonados, só mesmo platônico, que encheria até a barriga e aceitaria morar debaixo da ponte, foi-se. Isto é, foi transferido para os filhos. O marido, homem da casa, tornou-se apenas o provedor, cujo dever não pode falhar; cuja falta, não tem desculpas. A mulher, mimosa de ontem, tem duas posturas: Ou vai à luta em busca de prover o que o incompetente do marido não dá conta sozinho; ou fica em casa, como um feroz feitor de escravos a cobrar-lhe a responsabilidade da inadiável provisão; até mesmo do supérfluo que poderia ser preterido ou deixado fora do orçamento. O falatório no meu ouvido não cessa. Todos os dias ela repete o mesmo discurso irritante, e ainda se faz vítima dos meus cruéis maus tratos. Coitado de mim!
Isso é tão grave e me atormenta tanto que eu já pensei até em roubar e assaltar. Mas eu não consigo fazer isso, não é porque eu sou covarde não, é porque eu sei que não é justo com os outros. Além disso, a minha incompetência é tão grande que eu sei que seria preso na primeira tentativa.
A essa altura, como fracassado no implacável campeonato da vida, oprimido, sob pressão, opressão e cobrança; sem uma migalha sequer de auto-estima, o pobre homem perde também o interesse pelo uso de seu instrumento fálico. A libido agora foi apenas um sonho de ontem, a qual, sob a opressão da mulher, não lhe responde mais. A força dominadora das mulheres chamadas fortes mata a libido do homem, gerando uma frustrante inversão de papéis. Ele, que já não servia para muita coisa, agora já não serve para mais nada. Resta-lhe apenas tornar-se um ébrio e alienar-se de vez, abandonado o picadeiro do circo da vida, deixando a farsa de um palhaço em que a sua vida se tornou.
O cartão do banco, em cuja conta o parco salário mínimo de vigia noturno era depositado, ficava com a mulher que, ao recebê-lo todos os meses, o fazia sob lamentação; afinal era muito pouco e não dava para manter a casa, eu teria que dar um jeito; tinha que arranjar outro emprego, durante o dia, em vez de passar o dia inteiro na rua, nos meio dos cachaceiros.
Eu ia e voltava a pé para o serviço para vender os vales e aumentar um pouco o orçamento. O vale refeição que recebia também era deixado em casa, assim a mulher os usava no sacolão, na padaria e no açougue. Uma vez por mês os peões da obra recebiam uma cesta básica. Nem nesse dia eu pegava ônibus. Eu fazia questão de carregá-la nas costas até em casa; na verdade mesmo, bem no fundo, eu só queria que esse meu ato de heroísmo fosse reconhecido por minha família como um esforço de minha parte; mas, infelizmente, eu acho que eles nunca viram isso.
Na maior parte do tempo eu preferia ficar na rua. Eu emagreci, porque evitava comer em casa, pois, já que eu estava ajudando pouco, temia que pudesse fazer falta para os outros. Eu já não tinha mais crédito, o meu nome não estava sujo, estava imundo. Eu não pedia dinheiro emprestado a ninguém, nem pedia nada; exceto quando estava bêbado; nesse estado eu pedia cachaça a qualquer um que passava.
Não me embaraça
Pedir uma cachaça,
A qualquer um que passa.
Os parentes tinham medo que eu lhes pedisse alguma coisa. Eles não nos visitavam, nem nós os procurávamos.
A falta de dinheiro é o caminho mais curto para se obter o desprezo de alguém. Os parentes desprezavam a minha família porque nós não tínhamos dinheiro. A minha família me desprezava porque eu não tinha dinheiro; não sabia ganhar dinheiro; não conseguia ganhar dinheiro. Eu conseguia apenas trabalhar. Mas isso não interessa, no sistema capitalista que nos consome as entranhas como esses malditos vermes me consomem a fressura, não importa o quanto um homem seja trabalhador, o que importa é se ele é um bom negociante e se consegue ganhar muito dinheiro.
Eu sofria. Via o meu filho vestindo uma calça emprestada de um colega; e via o outro usando um tênis remendado que o outro colega deu; e via a minha filha usando um sutiã remendado, costurado e amarrado; e via a minha mulher usando roupas que foram doadas para o bazar da igreja.
Eu andava errante pelas ruas e vias as pessoas sorrindo; e via as pessoas nos bares, restaurantes e pizzarias gastando um dinheiro que eu não tinha. Por hora eu as odiava. Não porque eles tinham dinheiro para gastar, mas porque eu não tinha, às vezes nem para comer direito.
Depois de muito sofrer e pensar na vida; decidi por fim a essa caótica odisseia, se é que alguém pode chamar isso de vida.
Ninguém sabe o que se passa na mente e no coração de um homem, ninguém.
A polícia fechou o trânsito no viaduto. Os curiosos se aglomeram por todos os lados. Há quatro bombeiros subindo pelos arcos do viaduto em que estou; dois de cada lado. Já fui filmado pela imprensa, já tiraram muitas fotos. Amanhã devo ser manchete nos jornais de verdade, não apenas nos jornalecos de vinte e cinco centavos. Eu deixo de ser um alcoólatra anônimo para ser um suicida conhecido.
Eu sei que Deus, sendo tão bom e misericordioso, não vai se aborrecer comigo por causa disso. Melhor que eu, Ele sabe que eu já morri há muito tempo. Eu pedi tanto a Ele pra me ajudar; eu sei que Ele ia me ajudar, mas é que eu não consegui esperar, estava muito difícil pra mim.
Os bombeiros são muito bons. Eu gosto deles. Talvez se eu fosse um bombeiro militar, igual a eles, poderia ter sido um pouco feliz. Quem sabe? Acho que isso só devaneio. Eles estão falando comigo para eu ficar calmo que tudo vai ficar bem. Eu sei que tudo vai ficar bem, principalmente para mim, melhor do que eles imaginam.
Arredei mais para a beirada. Eles estão se aproximando de mim e dizendo para eu ficar quieto e parado. Eu não posso ficar quieto porque os vermes que estão me comendo não me deixam ficar quieto.
O último voo do pássaro; falcão negro em perigo; o voo fugaz de Ícaro, além do mais, amargo fim; o voo da Fênix pelo avesso; o voo de Elias nos cavalos de fogo.
Eles são muitos, mas não podem voar.