EMPATE
Narrador da velha escola, formado à época do domínio absoluto do rádio, fora moldado para as polêmicas esportivas.
Com estilo empolgante, rios de palavras despejadas no dial e carregado de bordões, aterrorizava dirigentes, treinadores, cartolas e jogadores. Porém, adorado por torcedores de alambrado com radinhos colados ao ouvido.
Possuía uma mania: após o final de cada partida que narrava e depois que os torcedores e a sua equipe de apoio já haviam se retirado ele descia para a beira do gramado e girava o olhar por todo o estádio como se quisesse gravar cada detalhe da arena, da cancha de jogo, das arquibancadas. Embora já veterano repetia sempre esse ritual quase que num transe hipnótico.
Naquele início de noite de domingo quando chegou à beira do gramado era observado apenas por Jeremias, o eletricista que, de sua cabine, começava a apagar as luzes das arquibancadas e os refletores do gramado.
Do nada o velho narrador foi despertado do seu quase transe.
- Hei, tá lembrado de mim?
Atônito, virou-se para a voz que o chamava. Pareceu reconhecê-la.
- Sem dúvida, mas você...
- Sim, morri num acidente.
Claro! Remontou rapidamente a trágica história de tempos atrás. O cara jogara uma boa partida fizera dois gols e indo visitar a família parece que dormiu ao volante do carro e em altíssima velocidade espatifara-se numa ribanceira.
- Apesar d’eu ter jogado pra caramba, você me espinafrou por aquele gol que eu perdi.
- Não tinha como ser diferente. Eram você, o goleiro e o canto a ser escolhido. Mas você já tá morto. Enterremos o passado!
- Tudo bem. Não quero polêmica. Só uma aposta contigo. Você lança cinco bolas no ar e eu prometo acertar três voleios no ângulo daquela trave.
- Que idiotice. Nem bolas temos aqui. E você já é um defunto há tempos.
- Há um saco delas do teu lado. Aceitas ou não?
Olhou para os lados querendo certificar-se de que não havia ninguém por perto testemunhando aquela sandice.
- Tudo bem! Quais são as regras?
- Bom, se eu ganhar você escreve uma coluna contando desse nosso encontro lá no jornal. Se eu perder, sigo minha estrada e vou jogar no Além Futebol Clube e te espero para narrar um lance genial que eu fizer por lá. Combinado? Já um pouco gostando do absurdo da situação riu e concordou:
- Combinado!
Combinar algo com um morto é como o tal do “chute no vácuo”: acerto em coisa nenhuma. Nada de obrigações.
Jeremias estava intrigado com a cena inusitada, mas continuou sua rotina de desligar disjuntores. O velho locutor continuou lançando bolas no ar aparentemente sem nenhum sentido. Quando apertou o último disjuntor e a escuridão cobriu o gramado, Jeremias achou ter visto mais uma luz prata em formato de bola cortar o ar e morrer no ângulo da trave à sua direita. Teria mais um causo de fantasma de algum ex-jogador para contar na mesa do boteco da rua onde morava.