Um corpo no escuro
 
 
Estou plenamente incoerente. Penso um monte de coisas descontroladas e pouco me importa o que os outros estão fazendo ou pensando. To nem aí. Ao invés de olhar pro outro, vou encarar-me no reflexo de minha nudez, e se eu tiver que cuspir na cara de alguém; cuspirei em minha própria cara. Que se dane o que dizem sobre o mundo; isso não vai resolver minha insensatez. Deixem-me aqui, assim, quieto. Agora vou sair sozinho pelas ruas escuras em aventuras incertas, pois quem sabe eu encontre algo que me roube de mim; que me divirta com enganações alucinantes. Sim, eu quero; quero essa fuga; preciso dela; só ela é capaz de me salvar, pois estou perdido nesse lamaçal. Apenas quero perambular pelas ruas, desprevenido e sem sentido algum, sentar nalgum bar e tomar alguma bebida forte e sorrir do vácuo, sem razão e sem medos. Ah! Escuto esta música que me transborda, e divago na obscuridade, e como sou indefinível por estar obscuro, por estar a um triz de tudo dentro desta imensa névoa negra. Agora estou sorrindo; sorrindo e chorando. É! Eu choro às vezes, mas não é de tristeza, é de sarcasmo; um cinismo incompreensível que me invade. Talvez eu esteja sorrindo da fragilidade humana onde sou este palhaço; isso mesmo, sou um palhaço, e quem não é? Quem não é um palhaço nesse palco absurdo? Despido, fico me olhando no espelho e acho engraçada essa nudez que impede que eu me veja visceralmente como sou. Não, eu não estou nu, eu não consigo atingir minha nudez suprema, jamais conseguirei enxergá-la. Apenas vejo um homem inteiramente pelado que eu desconheço e tento conversar com ele, mas ele ousa sorrir ironicamente de mim. Fico um tanto chateado e quebro o espelho na fúria que contamina minhas veias. Abro a porta da geladeira com muita força e coloco pedras de gelo no liquidificador, e no barulho da preparação de meu drinque, solto risos que não sorriem exatamente; pois soam falsamente. Agora já estou de frente pra mim outra vez diante ao espelho quebrado, e um livro de poesia desperta minha atenção, e o poeta diz que “Em verdades temos medo/Nascemos escuros...” Instantaneamente esta poesia faz com que eu me folhei mais secamente no estilhaço que estronda em meu corpo. E, penso que o poeta de tais versos viveu e percorreu as mesmas ruas que hoje eu percorro, e acho tudo muito engraçado e também estranhamente doido. Meu fervente sangue me instiga para que eu divague noutra caverna humana. Assim, perfuro outro poeta que afirma que ”Como eu navegava por rios impassíveis/Não mais me senti guiado pelos homens...”. Fico pensando um pouco sobre os passos de tal poeta o qual se refugiou em África buscando aventuras na ardência de sua pele. Veloz, largo o livro em qualquer lugar e encaro a parede branca e ultrapasso os limites das paredes de meu corpo indo me estacionar no ninho de minhas memórias e, confuso, não sei mais onde estou, e, outra vez, declino meus olhos na montanha empoeirada de livros e me deparo com outro poeta, e não sei o que me dirá, porém, quero, preciso, necessito de suas palavras ao acaso, e ele me diz que “Ascenderam às luzes, cai à noite, a vida substitui-se/ Seja de que maneira for/É preciso continuar a viver/Estou no caminho de todos e esbarram comigo...” E sinto que todos se esbarram comigo igual se esbarravam com o referido poeta que transitava pelas redondezas de Portugal, e, agora, eu, aqui, no Brasil, caminhando a esmo sentindo sensações parecidas com o poeta que diz que é preciso “Continuar a viver”. Euforicamente, necessito invadir outras vozes líricas, e na busca de alguma resposta que possa me amortecer, entranho-me noutra intimidade poética que me diz sem receios: “As vozes liquida do poema/ Convidam ao crime/ Ao revólver”. Mas não tenho revólver e não quero crimes perto de mim, pois eles existem de montão todos os dias nas páginas dos jornais pinchando as ruas da cidade com suas marcas sangrentas e tristes, e doloridas, e reais... Sinto que devo correr urgentemente em buscas de outros alívios; quaisquer fugas que aliviem meus nervos pulsantes. Reforço meu drinque, abro os braços, ingiro uma dose forte e arremesso o copo na parede, e observo incógnito, os cacos do copo e de mim, e a cor avermelhada do drinque escorre lentamente na parede branca. E, angustiadamente, busco refugiar-me em páginas folheadas ao léu, e é quando a prosa permeia-se em minha imaginação, e ainda o som dessa música suave que irradia meus ouvidos e transporta meu corpo pra quase fora de mim. E, passo a sentir uma liberdade profunda e metamorfoseio-me em alguma suavidade que quase me faz flutuar, e o livro diz que: “E agora os dois estavam abraçados na cama como dois macacos no jardim zoológico e nem a morte separa dois macacos que se amam”. E conheço um tanto da trajetória e do lirismo dessa escritora que solta palavras às quais discorrem do estranho; este mesmo estranho vivente em mim que folheia livros desvairadamente de maneira insana, sem saber como fugir desse corpo escuro sem razões coerentes... E saio cambaleando ao som da música libertária. Jogo meu corpo nu na cama e me vejo sorrir, mas logo desfaleço o sorriso e não me mexo mais, apenas a minha respiração diz existir alguém dentro deste quarto negro, submerso na música que segue me carregando paralisado em cima da cama dum quarto qualquer, nesta gigantesca caverna de prédios, na fatigante ornamentação da loucura urbana... 
 

 
Valdon Nez
Enviado por Valdon Nez em 17/10/2012
Reeditado em 11/07/2013
Código do texto: T3938485
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