Durante o velório
Observo a viúva, que chora inconsolável enquanto vela o marido morto e presto atenção aos filhos, sentados e calados. Apenas uma das filhas chora, mas não sei se é de alívio ou de pesar. Há outras pessoas que cochicham, falando do quanto ele bebia, tornava-se insuportável e fazia a família sofrer. De fato, ele não era um bom marido e eu não entendo por que a sua mulher chora tanto por ele.
O defunto era um peso morto na vida dela,bebia, chamava-a de burra, dizia que precisava beber para esquecer que casara com uma mulher inerte e que lhe dera filhos inúteis, burros e incapazes. A filha mais velha, a única que chora, é uma boa moça. Talvez não esteja chorando de alívio nem de pesar, mas pense no pai que poderia ter tido, nos momentos felizes que não teve.Sei muito bem que a moça se queixava que os outros pais chamavam as filhas de princesas, mas ele dizia que ela parecia um sapo cururu, não havia bruxa mais feia do que ela e que ela igual à Perpétua da novela Tieta. Pensando bem, ele foi mesmo um pai cruel.A moça sofreu demais e sem merecer.
Durante anos, a esposa foi escravizada pelo marido, que dizia que a tirara da lama e lhe dera um nome. Agora,contemplando o cadáver, eu penso que foi melhor que ele morresse. Que defunto feio, santo Deus! Parece um boneco de cera de uma loja de horrores. Ele morreu de cirrose, consequência dos longos anos de bebedeira.Sua doença foi uma tortura para a família que, além das despesas médicas, tinha que se dividir entre o hospital e as necessidades da casa. A filha mais velha cuidava da casa enquanto a mãe ficava com ele no hospital. E ele foi definhando devagar, até que seu organismo não suportou mais. Vomitou sangue no dia que morreu e os médicos disseram que não havia mais nada a fazer, exceto tornar sua morte menos dolorosa.
Entre as crueldades que ele dizia, estava a de que a família morreria de fome depois de sua morte e que nenhum dos filhos, sendo burro, conseguiria emprego. Mas eu observo bem cada um. A mulher aprenderá a viver sem ele,livre da escravidão. Vai livrar a casa das lembranças do falecido. Os filhos se arranjarão e verão que não são imbecis ou idiotas. E a vida será melhor para eles sem a mão opressora do morto, que encheu seus dias de lágrimas, revolta e desesperança.
Estendo-me sobre o caixão e, inevitavelmente, sinto uma certa vontade de chorar, porque penso numa vida desperdiçada. Ele foi um idiota, que teve uma boa mulher, a quem tratou pior do que tudo e não deu aos filhos uma vida melhor, tendo condições. O homem que se achava no direito de mandar na vida dos seus familiares como se fosse Deus irá tornar ao pó, transformar-se em esqueleto e sua família, enfim, conhecerá a felicidade.É justo.
Penso que é justo porque, afinal, esse defunto sou eu. Fiz minha família sofrer, humilhei-os, não fui marido nem pai. Na verdade, não dei motivo nenhum para que chorem por mim. Não mereço que sintam minha falta, pois a culpa é minha. Em vida, fui um idiota e, somente depois que deixei esse corpo que logo apodrecerá, adquiri consciência do quanto me foi dado e do quanto desperdicei. Que me esqueçam e encontrem a felicidade. E de mim, o que será? Irei ao inferno? Não sei, até agora, não apareceu o diabo com um tridente me puxando para o inferno, dizendo que irei para um lugar de fogo e sofrimento.
Talvez o meu inferno seja esse mesmo que agora presencio: passar a eternidade pensando no que eu poderia ter sido em vida e não fui. E não posso culpar a ninguém, senão a mim. Criei meu próprio inferno.