DIÁLOGO COM CÃES
DIÁLOGO COM OS CÃES
Também penso que os cães são os melhores amigos do homem, como todo mundo diz isso, que cão é sempre amigo mesmo, sempre abanando o rabo ainda que receba um pontapé, que gosta de ficar ao lado do dono ainda que nos piores momentos, repito o ditado. Com cão você pode falar à vontade; não é desses - maus ouvintes - ar de paisagem - está sempre prestando atenção com a orelha levantada, muito atento, mesmo que seja pra levar alguma vantagem, algum resto de comida, ficar no seu colo, passear no jardim; se tentar conversar, você, ou não vai ouvir, ou, se ouvir, pode responder como for de sua preferência mental, ou ainda, nem responder. Certos amigos cães se revoltam, aí é uma outra história. No geral, ele come o que você determina, dorme onde você determina. Sai para passear de coleira que você determina e, se você for muito prestimoso, ele pode ter roupinha para ir para a praça, caminha para dormir com desenhos de Walt Disney, ossinhos para roer, e até sorvete especial para cães, tem veterinário a domicílio e hotelzinho. Senhoras se encontram na praça Buenos Aires e conversam sobre eles, diariamente, não sei se travam grandes relações de amizade. Estão mais acostumadas a falar e trocar idéias com seus cães, que não contestam, não atropelam o discurso, não são invejosos, só ouvem. Em compensação, os cães soltos na praça divertem-se à beça. Os labradores são os mais alegres e desajeitados, aéreos; poodles, terriers e foxes, mais nervosos, latem esganiçadamente com medo de um futuro incerto; com olhos azuis e inadequadamente peludos, os siberianos parecem alguns turistas de primeiro mundo que vêm visitar o Brasil e ficam perplexos com certos hábitos nossos; alguns são tímidos e introvertidos como os galgos e os bassets, pastores alemães não se misturam muito, até porque são considerados mais inteligentes, não fica bem correr feito louco pela praça; uma grande maioria está mais preocupada em marcar o território, em cheirar descaradamente as partes pudendas de um vizinho que é para verificar se são confiáveis, alguns são realmente invasivos e levam algumas broncas, outros só falam de longe, suspirando. O Tico, da minha irmã Leyla, é considerado um fox neurótico. Parece que foi maltratado pela família anterior. A Pitoca, vira-lata da minha irmã Marli, era serena e sábia. O Sheik, meio vira-lata e meio pastor alemão, neurastênico e passional. O Black, cockie spaniel, acompanhava minha mãe pelo jardim enquanto ela rezava. Algum ancestral padre. A Onça, outra vira-lata, vivia de perna aberta. Coisas do caráter e dos hormônios, que cão também os tem. Em menor número, observo cães que passeiam com focinheira presos a uma coleira mais resistente. Verificam tudo, olham tudo - como guardas municipais que nem sempre olham tudo, só a moça que passa com a calça abaixo do umbigo, rebolando; essas raças não parecem se divertir muito. Caminham encostados ao dono:- Senta. - Atenção. - Pare. - Vamos atravessar a rua. Só um puxão na corrente. Alguma raça especial, do tipo rottweiler, pitbull ou doberman; não saberia dizer se são de má índole ou se a má índole é do dono; penso que, como tudo na vida, se exposto a um tratamento agressivo muito intenso, cria reações de defesa - agressividade de defesa - ou de ataque mesmo - do dono e do cão - que afinal, cão é descendente direto do lobo. Lobo é bem agressivo. Nasceu para viver em matilhas, nas pradarias, com hierarquias que fariam certos ditadores babar na gravata de felicidade. Se pequenos, os pais vão à caça e os deixam com uma loba-babá, moça, sonhadora, pobre coitada, que fica aguentando as brincadeiras de mau gosto dos lobinhos, mordida pra cá, unhada pra lá, e ela ali, perto do servil, sem se mexer. Quando os pais voltam da caça, ela abaixa a cauda hierarquicamente e não lhe é permitido partilhar da refeição. Até que, num dia de verão, essa loba jovem decide que se continuar ali sua vida vai ser um inferno, que as perspectivas de comer algum resto de comida serão cada vez mais remotas e que vai acabar morando na periferia sem antena parabólica ; resolve então, intempestivamente, ir embora com um companheiro que apareceu pela região, sem saber se vai ser mais feliz. Cansou de ser babá. Talvez vá ser patroa. No Brasil existe a raça Fila. Fui informada que é uma mistura com o Mastim. No Brasil colonial, os escravos fujões, quando recapturados, eram colocados em fila e obrigados a correr com as mãos atadas atrás. Soltavam então esse cão, que os estraçalhava em segundos, que era para dar exemplo de boa disciplina, boa ordem e boa colheita. Daí o nome Fila. Os escravos ficavam em fila. Não mudou muito. Temos filas e escravos. E temos o Fila cão. E temos minha irmã Marli que cismou de me fazer entrar numa chácara, onde existiam dois Fila. Naquele dia, comecei a pensar mais seriamente sobre os anjos da guarda.
Nessa praça Buenos Aires, além dos cães, existem os mendigos. Foram chegando à medida que o país foi se globalizando, nosso pib em patamar condizente com o do primeiro mundo., estão sempre juntos - como os cachorros que se encontram na praça. e também eles, possuem cães que os acompanham. Conheci um mendigo que carregava um cão numa caixinha. Era magro, de cor pardacenta, miúdo. Se ele comia, o cãozinho comia. Se ele não comia, o cãozinho não comia. Mas que o mendigo guardava sempre um bocadinho do que comia para o cão, isso lá é bem verdade. Simples. Mas se davam bem, os dois. Quando a cachaça atordoava muito, ele se deitava e o cãozinho deitava ao lado do seu pescoço misturando pulgas e jornal velho. E nas tardes friorentas, eles dormiam aconchegados, o homem com uma serenidade suspeita, o cão, serenidade insuspeita. De vez em quando, balançava a orelha sinal, dizem, que os cães também sonham. E também, vez em quando, a turma de mendigos brincava com o cão. Era um cão de boa índole. Abanava o rabo para todos, ouvia a história de todos, lambia a mão de todos, esperava paciente quando eles falavam ao mesmo tempo. Por vezes, ia passear sozinho. Não se atrevia a chegar perto dos cães das senhoras, tão bem vestidos e bem tratados, outro mundo cão. Olhava de longe, o olhar alerta, suspirava fundo, cheirava flor, mastigava um mosquito imaginário. corria atrás das pombas que não entendiam nada sobre a correria dele e das crianças, lá vem os chatos, marcava território que não era seu, pois que cão de rua não tem território era só mesmo por hábito, trotava e se esponjava na areia, meio que sorrindo. Talvez pensasse nos primos lobos, nas planícies e pradarias, na poodle e na dona da poodle que o detestavam. Estranho como sabia tão bem atravessar a rua, deslocando o corpo magro por entre os carros. Se dava bem com todos - mesmo. Menos com o guarda que tentou tirar o mendigo da praça, num rompante de civilidade, que ali não era lugar apropriado para se fazer as necessidades, deixavam a praça suja e muito fedida, que mexiam com as pessoas e amolavam os transeuntes pedindo esmola - que fossem trabalhar. E aí, o cãozinho arreganhou os dentes e atacou. Gosto dos cães. São o consolo dos velhinhos que também vejo na praça - que tiveram filhos, que não tiveram filhos, que tiveram companheiros, que não tiveram companheiros, que se perderam, que se acharam. - Vamos Filó - vamos almoçar. Vamos ver a novela? Filó também está velhinha., anda devagar, os pelos vão se perdendo pelo caminho, meio cega, tropicando, anda bem devagarzinho e, de vez em quando, para e não quer andar mais. Que feio hein Filó?! Tá ficando bem malcriadinha né?!!Vamos Filó!! E aí, a dona tem que carregá-la. Só o toquinho daquilo que foi um bonito rabo altaneiro e esperançoso indica sua resposta. Quando viram a esquina, estão muito parecidas, as duas velhinhas. Os cães, talvez sejam símbolo do amor que podemos dedicar, do que não pudemos ou soubemos dedicar em tempo hábil. Certa vitória do bem-querer.