Dr. Ateneu, o ateu, em: UIVOS DE UMA CERTA MULHER-parte I

“ O prazer so é possível quando viola alguma proibição, sem crime não há prazer”. ( Marquês de Sade)

Uma viagem de carroça, por caminhos ermos e de terreno acidentado conduzia-me ao convento de Santa Ana de Vila Viana. Ali, alguém necessitava de meus préstimos. Era uma amiga, de amizade recente, porém, valorosa. Fui recebido e conforme a sua instrução, deveria passar por médico clínico, e não psiquiátrico.

Quando já estava exausto, sedento e faminto, notei o freio brusco da carruagem. Enfim, chegamos. Desci, admirei a fachada do convento, estilizada, e repleta de verde á sua volta. Alto muro o cercava.

Fui interrogado por uma velha e gorda senhora, de hábito – era a soror daquele convento, segundo informações, o mais radical, onde a entrada de homens era vigiada, fiscalizada e vista com desconfiança.

Entramos, andamos por longos corredores, pouco iluminados, onde o silêncio imperava – algumas freiras, se quer notavam a minha presença, outras me olhavam de soslaio, de forma ligeira, e seguiam para os seus afazeres indecifráveis por mim. Subimos e descemos escadarias. A construção era antiga, medieval, paredes de pedra, grandes salões se apresentavam, de poucos móveis, piso de pedra. Nuvens de morcegos bailavam, vervosos, fluindo-se para todas as direções. Adentramos por longo corredor, pouco iluminado. Ouvíamos ás nossas passadas, por mais, que tentássemos ser silenciosos.

Uma porta alta, de madeira grossa, forrada com detalhes de ferro, grampeada com grandes cravos se desenhava á nossa frente. Percebi que uma gradeira, ao notar á nossa presença, pelos ouvidos, antecipou-se, abrindo á porta, de forma preguiçosa-talvez, não pudesse com o peso da mesma.

Fui conduzido ao quarto, onde se encontrava a enferma – uma guardiã ficaria por todo o tempo nos vigiando, conforme era o regime da casa. Entrei no amplo quarto decorado com móveis do século XIX. Notei na parede um réplica do quadro O Jardim das Delícias, do século XV, de Hieronimus Bosch: o pecado associado ao prazer. O ser humano sempre teve uma queda pelo que é proibido e ilícito. Oensei com os meus botões, enquanto vasculhava com o olhar, cada detalhe da pintura. Fui interrogado:

- Professor, pode entrar.

O quarto estava em semi-penumbra, as janelas de cortinas cerradas. Não tive a indiscrição de correr o olhar por cada canto do quarto. Ela estava deitada sob cobertores e forros, apesar do calor que fazia. O hábito encontrava-se dependurado num cabide, ao lado da cama, próximo de uma das janelas.

As pernas roliças, sobrepondo-se ao tecido fino da camisola, revelou-se quando a gradeira puxou as cobertas e o forro para o lado, desnudando-na. Era uma bela e jovem mulher – tão bela quanto antes, rosto de deusa. Triste, porém,continuava belo.

O corpo delgado, de curvas fatais- tudo nela lembrava sexo, sedução e pecado. Corri os olhos pelos seus braços, e quando cheguei até aos pulsos, vi duas cicatrizes: fruto de uma tentativa frustrada de suicídio. Não pretendia morrer, é claro. Queria chamar a atenção, pedir socorro, é claro para alguém que pudesse salvá-la do mar de lama que a envolvia, sufocando-na por anos a fio.

Era preciso fazer algo grandioso, de impacto para que percebessem que estava sofrendo, e que necessitava de ajuda. Corri o olhar pelas paredes do quarto, e para minha surpresa, todos os quadros que ali estavam, tinhas as imagens voltadas para o cimento frio da construção. Sem lhe perguntar, deduzi que eram pinturas de santos, que têm olhar de repreensão, repressão, condenação. Olhar disposto a expulsar para o inferno os incautos pecadores.

A gradeira, sentou-ne num banquinho, num dos cantos do quarto, as mãos cerradas, postos no colo, ficou envolvida pela escuridão, logo atrás de mim, distante. Ela abriu os olhos, e olhou-me, virando a cabeça na minha direção. Inspirado, falei-lhe:

- Ninguém deseja sair do Paraíso, nem pela porta da frente, nem pela dos fundos

- Não posso deixar que eles me vejam...

Disse-me, ao sentir a minha observação

- Por quê, não?

- Estão sempre de olho em mim. É aqui que me troco, onde fico despida – ás vezes excitada sexualmente, quando nua, então, quando olhos para os seus rostos, percebo que estão de olhar guloso – olhos de desejo, vítreos – de homens comuns, ,pecadores, sedentos por sexo a fixarem-se nas minhas partes púdicas, desnudas.

- Mas, eu pensei que...

Falei, com surpresa.

- Eu gostaria de dar para Jesus Cristo...

A gradeira levou uma das mãos à boca, surpresa, chocada. Os olhos saltaram das órbitas, sabendo que seria impactante para ela, virei o meu rosto para conferir à sua reação.

- Gostaria de ter uma relação sexual com Jesus cristo?

- Sim, Dr. Ateneu. Oh, como me sinto mal por isso, por ter tal desejo infernal. Mas, é incontrolável, é algo assim, completamente fora de controle, que me possui, me envolve, e sou conduzida para os mais insuportáveis desejos da carne. Sinto-me arrebatada vorazmente pelos ventos mornos que emanam do inferno. Quem sabe, eu não esteja possuída pelo demônio... ( a gradeira benzeu-se). Queimo em brasas no ventre. Tenho tido convulsões noturnas, certas noites acordo gelada, suando frio e respirando com dificuldade. Tento gritar, mas não consigo proferir nenhuma palavra. A garganta fica travada e a língua embolada, e la... la... entre as minhas pernas: o calor que queima, o calor das cortesãs especialistas na ciência dos amorés ébrios, insanos, contagiantes tinham no passado, e arrebatavam reis e príncipes ao labor das alcovas proibidas e quente nos prazeres pecaminosos da carne.

A gradeira nada falava, porém, os seus olhos dialogavam com o que ouvia, os seus gestos com as mãos, os pés nervosos trocando de posição, constantemente.

- As cortezãs seduziam jovens candidatos ao celibatário da igreja, os seminaristas - e os velhos, caquéticos sacerdotes que eram missionários reconhecidos de grandes préstimos para á igreja, mas que levavam vida dupla. Os mesmos que caçavam e levavam á fogueira os ereges da santa Inquisição – as bruxas das paixões da carne.

- Eu entendo... não é do meu conhecimento, mas, existem falácias a respeito.

Enquanto falava assim, ela se contorcia na cama, se desnudava, corria as mãos, de forma nervosa pelo seu corpo: seios e vulva. Ficou suada e trincava os dentes. Tinha o corpo, por inteiro banhado em suor. As frases saiam de sua garganta, de forma quase inaudível- pareceria possuída, aos olhos de um leigo. O corpo era jogado de forma violenta contra o colchão. A cabeça girava para os lados, ou era jogada para trás, com o corpo torcido em curva como se quisesse nada pela colchão, de costas. Mordia os lábios, passava a língua pelo canto, insinuando a lascívia dos seus desejos insanos. Num gesto nervoso, abriu as coxas ao modo das rãs e introduziu quatro dedos na sua vulva, virando o seu quadril na minha direção. O som dos dedos sacudindo na sua vagina ribombava pelos quatro cantos do quarto, como se chocassem pelas paredes, teto e vibrassem de forma violenta nos nossos tímpanos.

A gradeira soltou um som que não ouvi direito e levou as duas mãos aos seus ouvidos, fechou os olhos. Começou a orar, orava de forma nervosa, frases se atropelando.

O som continuava, agora, casado com sussurros, gemidos e exasperação vocal, de toda ordem. Na minha opinião, ela queria dizer para si mesma, e talvez para mim, o quanto era gostosa, sedutora – um desperdício ser freira.

Alguém menos experiente se assustaria, acharia que a mesma estaria possuída pelo demônio. Não, para mim , era apenas uma mulher em brasas. Ela tinha seios belos, formosos, ancas largas, bumbum farto e bem desenhado. A barriga lisinha, sem volume excessivo. As coxas eram muito mais do que o sustentáculo do seu tronco – pareciam terem sido esculpidas pelo mais talentoso artista. Grossas, roliças, belas demais. A região pubiana aparada com esmero – os lábios vaginais na medida, a vulva era um montezinho de carne que saltava por entre o intervalo de suas coxas, com destaque. Os cabelos aparados á moda masculina – uma freira dispensa a vaidade dos cabelos, por obrigação – não deixava de ser linda assim ,mesmo. Nunca vou esquecer daquele olhar de sede, de pecado se desenhando para mim, pedindo, quase por clemência: “ toque-me, experimente as minhas carnes...”

Vi ali uma mulher desejando muito mais do que sexo – queria era a liberdade para poder curtir o sexo adoidado, mas não conseguia. Estava travando uma luta inglória: ela, pura, freira, contra ela pecadora, cheia de desejos insanos. Uma briga cruel entre a serva da igreja contra à mulher mundana. Quem vencerá? Eu lhe disse, quando deu estremeceu o corpo todo, curvando se para trás, soltando um gemido agudo, gutural, trincando os dentes, formando uma carranca em seu belo rosto – as veias do seu pescoço e testa se alteraram – estava desnuda, o seu corpo brilhava em suor.

- O pecado, o medo do castigo. A vergonha do adjetivo: pecadora, o medo do ateísmo. O temor do entregar-se, sem rédeas aos prazeres da carne, tudo isso so traz sofrimento e dor.

Falei, com voz pausada, tranquila. Ela estava, agora, convicta de que o showzinho que havia dado não havia me seduzido – lançou-me um olhar de satisfeita pela masturbação, mas decepcionante, a conquista.

- Eu tenho ódio de mim mesma.

- odiar o belo que desperta desejos profanos nos homens e nas mulheres. O mal não está nas formas , nem na beleza física...

- Sim, o mal habita no coração dos homens.

Eu sabia que ela falaria assim, por isso deixei as reticências, falei:

- O mal não existe, é ficticional, o homem pode fazer o que bem quiser, estará fazendo o que lhe é natural. O homem poderá roubar, matar, estuprar, ser impiedoso – tudo isso será absolutamente normal, todas as criaturas têm a sua forma de conduta na natureza. Cientificamente, essas coisas que o homem chama de maldade é marca registrada na criatura de Deus. No princípio não havia Leis, então, não havia crimes, não havia maldade, ou crime quando o “leão” abate a “gazela” para se alimentar.

- Estou ficando confusa...

- Parte dos temores e tabus do homem medieval, os sete pecados já não assustam o homem moderno, sabia? A inveja, a luxúria, a gula, a preguiça, a ira, a soberba , e a avareza foram assimiladas pela nossa cultura, não mais integral o rol das coisas proibidas e indesejáveis de nossa vida. A palavra pecado perdeu substância e se esvaziou de toda carga de pavor que continha.

- Está querendo dizer que estamos livres da ameaça do inferno e do purgatório?

-Sim, o futuro chegou, e nele, os castigos corporais, as humilhações infligidas por pais e mestres na árdua tarefa de educar não têm mais espaço. O pecado caiu em desuso, pelo menos no sentido de ofender a uma entidade fora de nós.

- Como a igreja, por exemplo?

-Sim, raciocínio perfeito. Mas, entre nesse rol: a família, os amigos, os vizinhos, os desconhecidos, e a tendência dessa lista é crescer e chegar ao infinito. Falar em pecado é falar em prazer, e não em culpa.

( continua)

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 03/10/2012
Reeditado em 09/12/2017
Código do texto: T3913773
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